De que pode falar-nos a escuridão? Das projecções do Mal que entrevemos nas sombras? De ansiedades inconfessáveis e terrores ancestrais que a força da razão empurra para um recanto do inconsciente? Da possibilidade inquietante de reconhecermos apenas uma pequena porção da realidade? Mafalda Santos fala-nos de tudo isto em “Conta-me, Escuridão” (Suma de Letras, 2021), uma colectânea de oito contos com ilustrações de David Benasulin e prefácio de Fernando Ribeiro.
A obra nasceu de “um jogo de provocação artística entre a autora e o ilustrador”, no qual este último seleccionava quadros que serviam de inspiração para um conto e uma ilustração. Cada um desses quadros é identificado nas últimas páginas, de maneira a que os leitores possam pesquisá-los – o que se recomenda vivamente.
A imagética resultante desta interacção faz tal jus ao texto que, após lermos as primeiras histórias, temos vontade adivinhar o conteúdo das seguintes, a partir da contemplação das respectivas ilustrações. Tal como um lápis a deslizar sobre papel, a escrita flui com uma simplicidade sedutora, que dispensa artifícios estilísticos. O poder da narrativa é suficiente para nos transportar para realidades onde tudo é possível, sendo a clivagem com o quotidiano potenciada pelos cenários isolados nos quais a acção decorre: uma ilha, uma vivenda murada, uma aldeia embutida num enclave rochoso, uma remota estalagem nas montanhas, uma casa de campo junto a um desfiladeiro. A inclemência do clima também contribui frequentemente para aumentar a tensão, como em muitas narrativas góticas.
Existem alguns temas recorrentes nestes contos. Um deles é a justiça – ou vingança, consoante a perspectiva. Outro, quase omnipresente, é o relacionamento entre pais e filhos: há mães que perecem devido ao nascimento, à morte, ou aos sonhos dos filhos, pais que protegem ou destroem a sua prole, mulheres mortas em vida por um desejo de maternidade e crianças que podem ser maléficas. Por vezes os temas conjugam-se, como por exemplo no conto de abertura, “Tríptico”, no qual um pai suspeita da origem demoníaca das filhas trigémeas, cujo nascimento lhe matou a esposa e lhe tirou o gosto pela vida. Mas não poderá o comportamento delas resultar do abandono a que foram votadas? Após ser cometido um crime, será o castigo de origem sobrenatural ou a alucinação de uma mente perturbada?
Ao começarem pelo fim, esta e outras narrativas traçam um círculo sobre si próprias, reforçando a sensação de que as personagens são reféns de um destino ao qual não podem escapar.
A memória é outro tema bem presente. Parte do efeito perturbador de “O Mundo de Christina” advém da amnésia da protagonista, que a impede de compreender a tortura que sofre. Em “O Mal por Detrás da Montanha”, a perda da memória é um dos passos da transformação de seres humanos em monstros – embora não haja aqui falta de gente monstruosa. Este último título baseia-se claramente nas lendas de fadas que raptam crianças, mas também é reconhecível a inspiração em antigos contos fantásticos portugueses e nos clássicos, não faltando um gato que nos remete para Poe.
Não é fácil explicar o prazer que a boa ficção de terror pode causar. Este livro não o explica, mas demonstra-o na perfeição. Recorrendo às suas próprias palavras, “o cérebro humano demora alguns momentos a adaptar-se a uma realidade totalmente inesperada” mas, depois de mergulharmos nesta fauna de monstros e medos, ficamos cativados de tal maneira que dificilmente o largaremos antes de chegarmos ao fim.
Sem Comentários