No velho mas sempre clássico da banda desenhada francófona, quando entramos num túnel do tempo servido aos quadradinhos, recuamos até ao ano 50 a.C, quando toda a Gália estava ocupada pelos romanos e apenas uma aldeia, povoada por irredutíveis gauleses, conseguia resistir, muito graças ao feitio dos seus habitantes e a uma poção mágica preparada com muito esmero pelo druida Panoramix.
No tempo presente, mais ou menos no centro deste rectângulo chamado Portugal, há uma aldeia que teima em resistir aos festivais de música da era global. E, se no caso dos habitantes de Cem Soldos não há poção mágica que lhes confira uma super-força, a energia é extraída do espírito de voluntariado e da entrega dos habitantes de uma aldeia de mil habitantes que, durante o terceiro fim-de-semana de Agosto, encerra fronteiras, fecha todas as portas e recebe de braços abertos os forasteiros que aí acorrem. O motivo para tanta azáfama dá pelo nome de Bons Sons, uma festa de música portuguesa organizada pela associação cultural local Sport Club Operário de Cem Soldos (SCOCS) que, a nomes mais consagrados – este ano há, por exemplo, Clã, Ana Moura, Camané ou Manel Cruz -, junta projectos emergentes ou outros ainda por florir.
8 Palcos, divididos por ruas, praças, largos, igrejas e outros equipamentos, compõem um evento onde estes irredutíveis Cem Soldianos acolhem e servem os visitantes, tentando proporcionar-lhes uma experiência emocional que se estenda muito para lá de acordes, versos e rimas.
A menos de duas semanas do início do Bons Sons – que acontecerá entre 13 e 16 de Agosto -, o Deus Me Livro esteve à conversa com Luís Ferreira, o director do festival, que nos falou da decisão de fazer deste um festival anual, dos projectos sociais aos quais o evento está ligado e das razões que poderão fazer com que os festivaleiros façam de Cem Soldos uma paragem obrigatória.
Numa altura em que os festivais de música crescem um pouco como cogumelos, em paralelo com outros que vão sendo arrancados como ervas daninhas, o Bons Sons decidiu passar de um evento celebrado a cada dois anos para um festival anual. A que se deveu esta mudança que, aos olhos de muito boa gente, parece carregar uma certa dose de risco?
Uma imensa dose de risco, mas tem sido sempre assim desde o seu início: um festival de risco, baseado sempre em receitas próprias a que se juntam cerca de 15 por cento de financiamento público e privado. Um festival que vive muito do acreditar e da carolice das pessoas da aldeia e da associação. No fundo tivemos um pedido externo – do público, dos músicos, da própria imprensa e crítica – para que passássemos a seu um evento anual. Como queremos que o festival seja um motor de desenvolvimento local, e que com ele se consiga fixar os mais jovens e se crie uma dinâmica na associação e na aldeia diferente, decidimos que a cadência de dois anos não o permitia. O facto de ser anual permitirá que a marca Bons Sons esteja sempre presente e que as actividades paralelas que queremos construir em Cem Soldos – desde a questão da formação, das residências artísticas, da própria criação – tenham uma presença contínua, e que o Bons Sons seja o evento celebratório de todo o trabalho realizado durante o ano. No fundo trata-se uma alteração do próprio conceito do festival, que deixa de ser tratado como tal e passa a ser conhecido simplesmente como Bons Sons.
Como tem sido a vida do Sport Club Operário de Cem Soldos, e como surgiu a ideia de colocar a aldeia de Cem Soldos no mapa musical português?
A associação tem tido um papel muito importante a nível local e regional na área da programação cultural, não só da música mas também do teatro e de outras actividades. Em 2006 celebrou-se o 25º aniversário da associação, e tal acontecimento foi mote para desenhar um plano cultural com actividades de vários géneros que alteraram o contexto da aldeia e a sua ambição. Uma vez que a camada mais jovem de Cem Soldos era muito mais exigente, com uma ligação ao meio cultural muito maior, considerámos que várias das actividades não fariam muito sentido, como por exemplo a forma como trabalhávamos a Festa de Arraial. Gostávamos da proximidade, do ponto de encontro, da escala humana da festa, mas não nos revíamos na programação e na mensagem que veiculava. É neste contexto que surge os Bons Sons, um pouco à imagem e semelhança das festas populares, mas com um programa mais criterioso e incidindo na mensagem de trazer alguma contemporaneidade ao campo: pensar onde está a acção e onde é que as novas gerações podem construir e deixar um legado às que vêm a seguir, sem ser aquela lógica constante do “sempre foi assim”, “antigamente era assim”, ou aquele reduto exclusivo do meio rural que são as ovelhas e os enchidos.
Já se pode falar do Bons Sons como um evento auto-suficiente, pago através da bilheteira e do merchandising, ou há ainda uma forte dependência dos patrocinadores e mecenas?
É muito difícil um evento desta envergadura ser auto-suficiente. Conseguimos ter um investimento externo de apenas 15 por cento porque todo o nosso trabalho é voluntário. Trata-se do nosso pequeno legado, o nosso contributo para que a aldeia possa crescer, ganhar notoriedade e levar a cabo outros projectos sociais que consideramos importantíssimos. Mesmo os grandes festivais que têm bilhetes mais caros têm de ter uma grande base de investimento privado, o que torna difícil que estes eventos sejam auto-suficientes. E nem têm de o ser, pois é um papel social e cultural também assumido pelos investidores, num investimento que traz também um efeito económico para a região – o Bons Sons traz para a região cerca de 750 mil euros, há quem fale em 1 milhão -, além de representar um papel importantíssimo na requalificação e na imagem da zona.
Ouvi-te numa entrevista dizer que o lucro é reinvestido em projectos culturais e sociais ligados à aldeia, como o “Lar Aldeia” e o “Casa Aqui ao Lado”. Queres falar-nos um pouco desses dois projectos e desta visão de cultura comunitária?
Em primeira linha, o projecto social mais interessante que o Bons Sons traz não é organizado nesse sentido. Falo na capacitação, no facto da população trabalhar e crescer com o festival. Dos mais novos aos mais velhos todos encontram um lugar neste contributo para o bem comum, e esse é um dos elementos mais inspiradores e mais importantes do festival. Há depois esses dois projectos: O “Lar Aldeia” vive da mesma dinâmica comunitária da aldeia, onde reabilitamos várias casas do centro que são depois destinadas ao acolhimento de idosos que tenham ainda algum independência e mobilidade, e que queiram manter a sua privacidade contando com os serviços de um lar tradicional; depois temos a “Casa Aqui ao Lado”, que ajuda imenso na programação cultural contínua da associação, e que serve de mote e inspiração a essa criação. São dois projectos que vão mudar muito a vida da aldeia, criar emprego e fixar os jovens. Há dez anos era impensável pensar nisto, coube ao Bons Sons dar credibilidade à equipa e à associação local, o que tornou mais fácil o estabelecimento de parcerias.
Não foi confuso para os habitantes de tão pacato lugarejo verem-se invadidos por uma turba de muitos milhares?
Acho que Cem Soldos estava preparado para isso, Tomar talvez não tanto assim. Há sempre uma estranheza, mas o festival sempre teve uma facilidade enorme em lidar com isso porque é feito por pessoas de cá e com as pessoas de cá, que gradualmente foram percebendo que estão envolvidas e que o sucesso do festival é o sucesso do seu próprio trabalho. Talvez o processo mais difícil – que depois acabou por não o ser – tenha sido em 2010, quando fechámos a aldeia pela primeira vez, o que logisticamente representou um constrangimento enorme na vida das pessoas. Mas quando se percebeu que isso trazia mais limpeza, mais segurança, mais organização, deixou de representar um constrangimento.
Fala-nos de um momento engraçado vivido à volta do festival.
Lembro-me de em 2008 um senhor ter vindo uns dias antes à associação, dizer que se alguém do campismo, que então estava montado perto da sua propriedade, fosse aos terrenos dele comer as uvas, viria até cá e daria um tiro no presidente. E nós dissemos tudo bem, que tratávamos disso depois do festival. Acontece que um dia viu passar um grupo enorme vindo da Trofa, onde ele tinha feito a tropa em jovem. Falo de um senhor dos seus sessenta, setenta. De repente percebeu que o acampamento estava esgotado e que o grupo ia ficar desamparado, e então convidou-os a instalar-se no seu terreno. Pôs pontos de água, forneceu-lhes iluminação, e disse-lhes que podiam comer os figos, as maçãs, o que quisessem, só não podiam era tocar nas uvas. Ninguém tocou nas uvas e, desde então, o senhor é voluntário do Bons Sons de uma forma bastante presente. As pessoas vão vendo que o público que tem vindo em massa é sempre muito compreensivo em relação à dinâmica da aldeia. O que significa que temos estado a comunicar para as pessoas certas.
O que se pode encontrar no Bons Sons para lá da música?
Primeiro que tudo a vivência da aldeia, que se divide pela descoberta das tasquinhas, dos restaurantes, em andar a vaguear pela aldeia e sentir esse pulsar. Há também a feira das marroquinarias, ou as conversas de mural sonoro com dois artistas da programação – Manel Cruz e Tó Trips; há também os projectos de arte urbana do Walk & Talk, um festival de arte urbana dos Açores, ou a mostra de cinema das curtas em flagrante, que todos os dias apresentará uma sessão de curtas-metragens portuguesas. Não esquecer o espaço criança e a programação infantil durante a manhã, que complementa toda a actividade para as famílias, não só na lógica dos serviços e das necessidades logísticas, como o fraldário, mas também com actividades de entretenimento, babysitting e programação musical dirigida as mais pequenos.
O que tem o Bons Sons que os outros festivais não têm?
Primeiro trata-se de um projecto cultural, com efeitos colaterais duradouros que se reflectem em toda uma comunidade. O preço do bilhete é também muito apetecível – 35 euros para 4 dias de programação e 45 bandas -, e se pensarmos que se trata de uma aldeia com voluntários, no centro do país, que quer fazer a diferença e ser uma inspiração para outras aldeias e bairros – nessa questão da descoberta de um novo futuro que não se ligue às ideias de crise ou de inacção -, não há razão para as pessoas ficarem em casa. Trata-se de uma experiência de ser contagiado por toda esta energia positiva, num local onde as pessoas relaxam, os músicos estão em contacto com o público e a aldeia vive e respira de forma diferente. É dizerem “estes gajos estão a ir no caminho certo”, e virem até cá poderá ser uma forma de credibilizar, de apoiar e de dizer “estamos com vocês”.
Créditos das imagens:
Carlos Manuel Martins – fotos “placa cem soldos”, “guitarra” e “público no concerto”
Pedro Sadio – foto “rapazes e raparigas com placas”
José Carlos Albino – foto Luís Ferreira
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