“Uma noite, em finais de março, uma adolescente pegou numa caçadeira de canos duplos, entrou na floresta, encostou a arma à testa de outra pessoa e puxou o gatilho. Esta é a história de como chegámos a esse momento.”
Assim começa “Beartown: A Cidade dos Grandes Sonhos” (Porto Editora, 2021), do sueco Fredrik Backman, que nos transporta para Björnstad, uma cidade pequena, fria e escura, situada no meio de uma floresta. Björnstad é também o título original da obra e significa “cidade dos ursos” (a opção pelo inglês no título da edição portuguesa será provavelmente uma chamada de atenção aos espectadores do canal HBO, que transmitiu uma adaptação televisiva com esse nome).
Os habitantes sempre se identificaram com a força e a resistência do urso, usando-o como uma espécie de totem da cidade. Sobretudo num mau momento económico, com altos níveis de desemprego, ressentidos com o resto do mundo, agarram-se a essa imagem, que é também o símbolo da equipa masculina local de hóquei no gelo, na qual converge toda a esperança. A equipa chegou à meia-final no torneio de juniores e sonha-se que vença a final. Tal sucesso, além de os fazer sentir que são os melhores nalguma coisa, poderia chamar a atenção das autoridades regionais e trazer para a cidade, sucessivamente, uma escola nova, estradas melhores e um centro comercial, o que implicaria novos negócios e postos de trabalho, para que as pessoas da terra não tenham de partir em busca de melhores perspectivas de futuro. Mais do que um mero desporto, o hóquei é uma questão de sobrevivência, e “toda a gente tem de perceber que o bem do clube está acima de tudo o resto“. Mas o clube, por sua vez, tornou-se “um reino no qual está em curso uma luta pelo poder entre os homens mais fortes da floresta“. Os patrocinadores que salvaram o clube da bancarrota querem lucrar com os investimentos e vêem os jogadores como produtos a desenvolver e rentabilizar em vez de seres humanos.
Todos os rapazes da equipa, desde o jovem da família mais endinheirada, educado para não aceitar nada menos que a vitória, até ao filho da imigrante pobre, para quem o hóquei se apresenta como uma porta de entrada na sociedade, carregam o fardo das expectativas dos outros, mas sabem que a povoação tende a perdoar todas as faltas aos vencedores, no hóquei e na vida. Por isso, quando um deles comete um crime sexual, toda a cidade entra numa guerra que a mudará para sempre.
A partir de uma série de eventos que poderiam ser resumidos em poucas linhas e, nas mãos de um autor menos hábil, originar um drama menor, Backman desenvolve uma obra impressionante, com personagens magistralmente construídas, onde disseca relações familiares, amizades, lealdades e hierarquias, expondo sem piedade o mal insidioso que resulta da discriminação sexual, económica e social. A representação das dinâmicas de exclusão e inclusão dos indivíduos nos grupos e da força do ódio que produz a desumanização daqueles que são vistos como inimigos é assustadora, mas as sombras são equilibradas pelos momentos luminosos de uma narrativa inesquecível que reserva várias surpresas para o leitor.
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