No Outono de 1897, a descoberta de ouro em Klondike atraiu para essa terra árctica milhares de homens, os quais precisavam de cães “com músculos poderosos para o trabalho e pêlo espesso que os protegesse da geada”. Isso determinará o destino de Buck, o protagonista de “O Apelo Selvagem” (Porto Editora, 2021), de Jack London (1876-1916), publicado pela primeira vez em 1903 e agora reeditado, com ilustrações de Skran.
Buck é um cão de quatro anos, resultante do cruzamento entre um são-bernardo e um pastor escocês, que habita no soalheiro Vale de Santa Clara, numa quinta onde é estimado. Tendo aprendido a confiar nas pessoas “e a dar-lhes o crédito de uma sabedoria que ultrapassava a sua”, deixa-se conduzir uma noite, naquilo que julga ser um passeio rotineiro, por um ajudante de jardineiro viciado no jogo, acabando vendido a um desconhecido que logo começa a maltratá-lo.
Até então, Buck fora um cão “demasiado civilizado, que não conhecia nenhuma armadilha por experiência própria, pelo que não podia ter medo delas”. Agora, magoado e preso, confuso, sofrendo fome e sede, traficado para puxar trenós na neve, com cargas que vão desde o correio do governo do Canadá até à bagagem de aventureiros insensatos, Buck aprende a submeter-se à força bruta dos homens e a competir com os outros animais, de modo a sobreviver num meio onde os cães são explorados até ao limite. Ao mesmo tempo, desperta nele o instinto dos seus antepassados lupinos, adormecido pela domesticação, mas nunca totalmente extinto. Graças a essa força primordial, acaba por conseguir rivalizar em força, selvajaria e astúcia com os mais temíveis dos seus companheiros, até se tornar líder da matilha.
Um momento marcante da sua história é o encontro com John Thornton, que o salva de uma morte certa e cuida dele com tal bondade, que lhe desperta uma adoração que nunca antes sentira. Será o amor por este homem suficiente para devolver Buck à civilização, ou irá o apelo do seu lado selvagem, que o tenta a “mergulhar na floresta e ir para longe”, sobrepor-se a tudo o resto?
Mais do que uma história sobre um cão, esta obra proporciona uma análise do conflito entre natureza e civilização, ainda que as recordações ancestrais atribuídas a Buck nem sempre pareçam credíveis. Além disso, sabendo que Jack London foi um defensor da justiça social, será legítimo supor que a personagem do cão é um meio para abordar indirectamente problemas que também afectam os seres humanos. Por exemplo, Buck “não roubava pelo prazer de roubar, mas por exigências do estômago”. Perante as adversidades, a sua “natureza moral” tornou-se uma “coisa inútil, um obstáculo até, na impiedosa luta pela sobrevivência”. Assim, o autor não só denuncia a bestialidade dos homens que maltratam os animais, mas também a forma como o verniz da civilização pode depender das condições de vida, seja qual for a espécie.
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