Em Abril de 1971, o cargueiro Angoche, da Marinha mercante portuguesa, é encontrado em chamas, sem ninguém a bordo, em pleno oceano Índico. O mistério que envolve o caso persiste até hoje, tendo proporcionado a Carlos Vale Ferraz (1946-) o ponto de partida para a sua obra mais recente: “Angoche: Os Fantasmas do Império” (Porto Editora, 2021).
O autor, distinguido com o Prémio Literário Fernando Namora 2018, encontra-se numa excelente posição para abordar este tema, pois foi oficial do Exército português, cumpriu comissões em África e tornou-se investigador de História Contemporânea de Portugal. Nesta entrevista, partilha a convicção de que a verdadeira história do Angoche foi silenciada devido a “alianças e cumplicidades políticas ao mais alto nível entre estados”. Nesta entrevista ao Deus Me Livro, assume também que o ponto central da obra é a busca da verdade e conta, entre outras coisas, como lhe agrada cruzar factos com ficção.
A leitura do seu último livro, “Angoche”, gera surpresa, na medida em que muitos leitores pensam: “Como é possível eu nunca ter ouvido falar deste caso?” Que resposta daria a essa pergunta?
A primeira razão tem a ver, no meu entendimento, à política geral de informação do governo, o regime, e das próprias Forças Armadas, sobre a guerra. O princípio geral era o de uma informação de baixa intensidade, que se falasse o menos possível da guerra. Que a guerra fosse entendida pela sociedade como um facto normal, como uma situação comum, como o emprego e o desemprego, por exemplo. A mesma política de silenciamento ocorria também com a emigração, ou com os cataclismos, caso das cheias de 1967. O regime tinha uma matriz messiânica, havia o destino, os acontecimentos faziam parte do nosso destino e nada havia a fazer para o alterar a não ser rezar e esperar que o tempo resolvesse as situações. O outro ponto, e agora directamente relacionado com o Angoche, julgo que o silenciamento se deve a razões de alianças e cumplicidades políticas ao mais alto nível entre estados – casa de Portugal e da África do Sul, entre polícias e serviços de informações, caso da PIDE e da BOSS sul-africana e que não interessa, continua a não interessar, aprofundar para não reabrir feridas. O facto de eu ter escrito uma ficção deu-me liberdade para lançar essas pistas.
Quando e como teve conhecimento do caso?
Estava em Moçambique nesta data e tinha acesso à informação oficial militar e operacional, aos estudos de situação. Por outro lado, como pertencia às tropas especiais conhecia este tipo de operações e conhecia alguns dos intervenientes nas buscas do navio Angoche. Conhecia também o ambiente social de Moçambique, em particular da sociedade branca de Lourenço Marques (Maputo) e Beira. Podia fazer o enquadramento dos interesses que estariam por detrás de uma operação deste tipo. Romancear.
Embora esclareça logo no início do livro que, apesar de recorrer a personagens e acontecimentos reais, se trata de uma ficção e não de um romance histórico, não receia o esbater da linha entre realidade e imaginação? Já não é perigoso abordar o mistério do Angoche?
Gosto muito do tipo de literatura designada faction, como a de Norman Mailler, ou Truman Capote, por exemplo. Misturando factos com ficção. Este cruzamento abre novas perspectivas aos leitores e dá uma grande liberdade aos autores. A realidade é sempre uma interpretação de factos, e com esta forma de escrita existe uma grande possibilidade de colocar questões. A mim, enquanto escritor, interessam-me mais as razões das personagens para agir, do que a acção propriamente dita.
A hipótese que apresenta insere-se numa guerra suja, travada na tentativa de preservar o colonialismo português em África. Considera que deveria haver algum tipo de reparação pelas atrocidades cometidas?
A guerra é sempre suja e um conjunto de atrocidades. Não há guerras limpas e doces. Também não existe julgamento da história: existem avaliações do passado, normalmente feitas à luz de conceitos presentes. A guerra é sempre um acto violento de imposição de uma vontade. No final das guerras o que existe é a justiça do vencedor. Podemos entender que é moralmente condenável. Mas a guerra e a história não são resultantes da moral, mas dos interesses e da capacidade para impor esses interesses. Isto para já não falar na impossibilidade de efetuar um julgamento- Quem o faria? Com que lei? A partir de que data se julgariam factos históricos? Quem julgaria as invasões romanas? Ou árabes? Ou a morte de Inês de castro? Ou a morte dos Távoras? Ou as invasões francesas? Só para dar alguns exemplos. O tribunal de Nuremberga foi justo? Os sul-africanos, com Mandela, criaram uma comissão de verdade e reconciliação.
Menciona várias vezes “os doidos do império”, “porque os impérios geram loucos”. Onde estão hoje esses “doidos do império”?
A ideia de império está, a meu ver, associada a patologias classificadas de loucura, mania da grandeza, esquizofrenia, incapacidade de perceber a realidade, pura manipulação de opinião pública e de sentimentos. A questão do império português é, durante o século XX, uma construção ideológica para justificar o salazarismo e a ditadura beata e rural. A sujeição de um povo aproveitando uma ideia de grandeza que devia ser restaurada. Racionalmente, Portugal não tinha no século XX condições para ser um império. Apenas Inglaterra dispunha dessa força e apenas até à Segunda Guerra Mundial. Depois o império britânico desmoronou-se, com a independência da Índia. A França nunca teve um império colonial. Para falar em império, só, de facto, doidos, alucinados, ou ignorantes, ou demagogos. Considerá-los loucos foi a designação mais simpática que encontrei.
No livro, o narrador é sobrinho de um militar e aprecia aprender com ele uma História diferente da oficial. Como historiador, considera que, apesar de todo o trabalho de investigação e divulgação feito até hoje, continua a existir uma grande diferença entre o passado real e a História que é ensinada nas escolas?
Conheço mal o que se ensina hoje nas escolas. A minha experiencia nas conferências e aulas, para que de vez em quando sou convidado, revelam-me um grande desconhecimento, não só dos factos da História, o que seria remediável com estudo e informação, mas da capacidade de entender os fenómenos históricos. Isto é, de ter, ou desenvolver, uma linha de pensamento que leve os alunos a serem capazes de responder à questão: o que somos hoje enquanto portugueses, europeus, nação no mundo e como chegámos aqui.
Após o fim da ditadura, o herói de “Angoche” encontra um Portugal “em vias de se acomodar de novo aos sons que secularmente guiaram o seu povo, o dos sinos das igrejas e o das trombetas dos senhores”. O que considera que guia o Portugal de hoje?
O farol ideológico – o que guia o Portugal de hoje é o farol da moda: o neoliberalismo e o individualismo. A convicção de que o mérito é fruto de um dom (o da esperteza) e da lei do vale tudo. O sino que guia Portugal é o mesmo que guia os Estados Unidos, ou a Europa: não um sino, mas uma sirene para abrir caminho por entre a multidão e atropelando quem surgir pela frente.
Este seu livro parece um excelente ponto de partida para a escrita de um argumento para um filme ou a uma série televisiva. A ideia de uma adaptação audiovisual seria do seu agradado?
Gosto muito de ver obras minhas adaptadas a outros suportes. Já tive essa experiência com “Os Lobos Não Usam Coleira”, adaptado pelo António-Pedro de Vasconcelos com o título “Os Imortais”, o romance “Nó Cego” está a ser adaptado. Já escrevi uma série longa: “O Regresso a Sizalinda”, adaptada do romance “Fala-me de África”. A adaptação coloca-me perante outra visão do que escrevi e imaginei, e é muito estimulante observar como guionistas e realizadores lêem o nosso romance e as nossas personagens. Teria o maior prazer em ver o Angoche adaptado ao cinema.
De certa forma, lemos nesta obra um elogio àqueles que procuram a verdade. Era essa a sua intenção? Como poderemos combater a desinformação?
Este é, de facto, um romance que coloca como ponto central a busca da verdade. A busca da verdade permite-nos descobrir os meandros em que somos enrolados para melhor sermos manipulados. Combater a desinformação começa por ensinar a duvidar. Isto é, a desenvolver o sentido critico. A perguntar: será ou terá sido mesmo assim? Quem está interessado nesta versão? No caso do Angoche existiu uma verdade oficial. As grandes dúvidas surgem quando aparecem várias verdades oficiais e elas não coincidem e até se contradizem.
Tenciona continuar a recorrer à História Contemporânea de Portugal como fonte de inspiração literária? Pode divulgar algo acerca dos seus projectos?
A nossa história está sempre a ser reescrita. Eu penso pegar num tema que tem perpassado por outros romances e de que já aqui falei, que é o da identidade. Quem somos. Quem somos individualmente e quem somos colectivamente. Há um título de uma canção do Sérgio Godinho que me parece apropriado: “Pode alguém ser aquilo que não é?” Será uma tentativa de resposta a essa questão que procurarei.
Sem Comentários