Em 1994, Quentin Tarantino trocava as voltas ao espectador e atirava com a narrativa linear às urtigas, transformando dois defuntos em heróis maiores de um filme com muito espírito pop. “10 Minutos e 38 Segundos Neste Mundo Estranho” (Editorial Presença, 2020), de Elif Shafak, não poderia estar mais longe da comédia negra inventada por Tarantino, mas transforma igualmente a morte em narrativa: “Embora o coração tivesse parado de bater, o cérebro estava a resistir, um combatente até ao fim”.
O coração que acaba de parar pertence a Leila Tequila que, do limbo, irá espremer uma vida cheia de obstáculos: “Ao longo dos anos, fora revistada, fotografada, tinham-lhe tirado as impressões digitais, e sido presa com maior frequência do que gostava de admitir”. Uma vida que, ainda assim, lhe permitiu descobrir os seus cinco mosqueteiros: Sinan Sabotagem, “a sua árvore de abrigo, o seu refúgio, a testemunha de tudo o que ela era, de tudo aquilo a que aspirava e, no fim, de tudo aquilo que nunca poderia ser”; Nalan Nostalgia, que em criança se viu presa num corpo atribuído por Deus por engano; Jameelah, uma estrangeira que “carregava consigo a sombra de outro lugar”; Zaynab122, a quem chamavam “anã, pigmeia ou polegarzinho”, tudo por causa dos seus 122 cm; e Humeyra Hollywood, cantora, “a mulher que conhecia de cor as baladas mais bonitas da Mesopotâmia, e cuja vida recordava um pouco as histórias tristes que muitas delas contavam”.
Assumindo-se como “a personificação ambulante da imperfeição”, Leila não chorou logo quando nasceu, o que fez a parteira interrogar-se sobre se quereria ou não viver no nosso mundo. A sua trajectória, com algo de Shakespeariano, faz-se em oposição à “obediência incondicional à idade e à autoridade”, numa sociedade patriarcal onde há abusos sexuais, a prostituição surge como porta de fuga, as convenções têm a rigidez de um defunto e Deus é uma figura castigadora, que apenas concede o perdão após uma série comprovada de tormentas.
Istambul, a terra julgada Prometida por Leila, surge como velha e maníaca, capital de uma pátria que “ainda não tinha solidificado”, cidade matrioska com várias outras lá dentro, onde todos os sonhadores e descontentes acabam por ir parar. Uma cidade onde é fácil matar e ainda mais fácil morrer, mostrando o quão patético é “relegar a morte para a periferia da vida”.
Um romance que lança um olhar magoada a um país que fez marcha-atrás, numa história comovente sobre a amizade que é, também, um tributo aos anónimos, e que se lê como uma carta de amor trágico a uma cidade que ainda tem, no seu âmago, a capacidade de transformar a dor em algo belo.
Elif Shafak nasceu em Estrasburgo, França, em 1971. É uma romancista turco-britânica, detentora de diversos prémios literários. É a autora mais lida na Turquia. Escreve em inglês e em turco, tendo já publicado dezassete livros, onze dos quais romances. A sua obra já foi traduzida em cinquenta línguas. É doutorada em Ciências Políticas e leccionou em diversas universidades na Turquia, nos Estados Unidos e no Reino Unido, incluindo no St. Annes College, Universidade de Oxford, onde é fellow honorário. É membro do Conselho Global do Fórum Económico Mundial na Área de Economia Criativa e membro fundador do Conselho Europeu de Relações Externas (ECFR). Defensora dos direitos das mulheres, dos direitos dos LGBT e da liberdade de expressão, Elif Shafak é também uma oradora pública: participou duas vezes na plataforma global TED, tendo de ambas as vezes recebido uma ovação de pé.
A autora escreve regularmente para muitas das maiores publicações mundiais e foi-lhe atribuído o título de Chevalier des Artes et des Lettres. Em 2017, foi escolhida pela Politico, uma organização de jornalismo político, como uma das doze pessoas que tornam o mundo melhor. Foi juiz de numerosos prémios literários e presidente do Wellcome Book Prize em 2019.
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