Carnaval da Vitória não conseguiu fugir ao seu destino, mas a sua curta existência, num 7º andar de um prédio de gentes escriturárias, secretárias, funcionários de Ministérios, assessores e militantes do Partido, transformou-o na figura central de uma quase Torre de Babel que sobrevive à derrocada. Naquele prédio havia, como deve ser, um elevador para pessoas e um monta-carga para coisas. Mas seria o leitão uma coisa?
Com este introito se percebe que o suíno Carnaval da Vitória foi o centro de peripécias várias, entre conflitos e confusões no prédio e nas ruas da cidade. O nome fora-lhe atribuído por se prever que fosse comido no Carnaval – e por ir granjeando sucessivas alegrias e vitórias à família de Diogo, que conseguia ludibriar vizinhos, o regulamento da assembleia de moradores e os fiscais, sentindo-se cada vez mais um verdadeiro revolucionário.
Zeca e Ruca, os filhos de Diogo, afeiçoaram-se ao porco e nem podiam ouvir o pai programar a matança. À custa do mesmo, ganharam na escola um concurso de redações e a simpatia dos colegas: “Carnaval da Vitória é o porco mais bonito do mundo. Meu pai que lhe trouxe no sétimo andar onde a comissão de moradores é reacionária porque não quer porcos no prédio e o camarada Faustino tem kandonga de dendém e faz kaporroto a cem kwanzas cada búlgaro”.
Manuel Rui escreveu “Quem me dera ser onda” (Guerra & Paz, 2021 – reedição) em 1980, ano em que foi imediatamente premiado e adaptado para teatro e televisão em vários países, inclusive Portugal. A Guerra e Paz lança agora, em 2021, a 3ª edição deste texto de ficção que retrata de forma humorística, mas real, a sociedade angolana nos anos imediatamente seguintes à descolonização. Um tempo e os seus circunstancialismos, a ocupação e a usurpação, as tentativas de organização e de sobrevivência, a vigilância e o instinto de sobrevivência individual e comunitária, a força e a resistência das gerações mais novas, tempo de palavras de ordem, de audácia entre linhas revolucionárias, vizinhos, pais e filhos, marido e mulher, (contra)poder e repressão.
Para quem acompanha a literatura lusófona, Manuel Rui dispensa grandes apresentações. Autor traduzido para diversas línguas, escreveu quase todo o tipo de textos, entre os quais o próprio hino de Angola. A sua formação académica e profissional passou por Portugal e consolidou-se em Angola, com diversas funções políticas e de representação internacional.
Ler “Quem me dera ser onda” é dar-nos ao direito de sonhar e de acreditar na genuinidade do amor das crianças, muito para além das convenções, ao mesmo tempo que se esboçam sorrisos porque o humor e a sátira estão lá, muitissimamente bem encaixados.
Sem Comentários