Não raras vezes, aqueles que lidaram com a mais dura e cruel realidade convertem o seu próprio sofrimento de espectadores ou de actores, ainda que secundários, em relatos reveladores que constrangem quem já não pode ignorar a realidade, emocionando os mais incautos. É a luta, a perseverança e a esperança no poder das palavras como forma de revelação e de superação, de libertação de emoções aprisionadas em memórias caladas durante anos, de comportamentos camuflados por retóricas infantilizantes. A palavra, dita e escutada, sussurrada e adivinhada, silenciada mas, ainda assim, revelada, é o motor da mudança.
Em “Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio” (Porto Editora, 2021), Julieta Monginho conjuga o percurso e as palavras de quatro personagens centrais, em tempos e dimensões diferentes: Mário, um emigrante português a viver em Amesterdão, segurança no RijKsmuseum, lugar onde o filho Leo aprendeu a sonhar com outra vida acompanhado pelo cão Puck – um amigo fiel, sempre disponível na sala 1.15 do museu; Nina, a bibliotecária mãe de Leo, cobradora de uma atitude em Mário que sabia improvável; Marten, o escritor bem-sucedido que viveu ao lado de Mário nos extremos do entusiasmo e do desprezo. Todos eles protagonizam a luta pelo reconhecimento e a afirmação da identidade pessoal, amorosa, sexual e material. Todos, de alguma forma, sucumbiram a comportamentos extremos de auto-destruição, rejeição e fuga.
Mário é o elemento comum, neste cruzamento de personagens que encetam viagens entre o real e o onirico, entre Amesterdão e uma aldeia alentejana de onde é oriundo, à qual regressa quando a sua vida dá uma reviravolta, descontrolado e perdido perante a ameaça de ficar privado de tudo o que conquistara: o filho, o amante, o trabalho. Um novo dilúvio de situações e emoções parecem empurrá-lo para um caminho que não parece dominar, no qual volta a confrontar-se com os episódios da infância e da juventude: a rejeição por um pai que tenta inverter a sua identidade sexual; a hostilidade geral e a fuga inevitável – primeiro de si, depois da aldeola e, por último, das vidas que foi ensaiando pelo mundo até chegar a Amesterdão.
Também Leo, o filho de Mário, parece ter aprendido a contornar a realidade, as discussões e as disputas entre os pais, a hostilidade sempre presente, o desapego pelo futuro, vítima de uma negligência encapotada. Aprendeu a sonhar sozinho, a efabular, a compor a realidade com amizade e esperança. Serve-se para isso da arte, da observação e do sonho, da projecção para outras dimensões, de viajar, de ter amigos imaginários.
Julieta Monginho oferece-nos um livro com uma escrita metaforicamente enriquecida, um retrato pungente da dura realidade de Leo, um rapaz cuja vida se faz em vidas disformes, coabitando com a ausência, a violência e a incerteza no debelar da sobrevivência existencial. A autora, que durante anos tem conjugado a sua dupla faceta de magistrada de Ministério Público e de escritora, é detentora de uma extraordinária capacidade de conjugar a observação aguda do real e uma elaboração criativa e sensível sobre o mesmo. O seu interesse intrínseco pelos direitos humanos está fortemente presente na sua obra, em títulos como “Juízo Perfeito” (1996), “A Paixão segundo os Infiéis” (1998) e “À Tua Espera (2000).
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