João Afonso dos Santos nasceu em 1927, em Aveiro, quando Portugal ainda detinha vastos territórios ultramarinos. As convoluções da história, tanto mundial como familiar, levaram-no a percorrer vários pontos desse antigo império e a declarar-se “o último dos colonos”, designação que usa como título principal das suas memórias em dois volumes: “O Último dos Colonos: Entre um e outro Mar” (Sextante, 2015) e “O Último dos Colonos: Até ao Cair da Folha” (Sextante, 2021).
Quem procura uma descrição neutra e ordenada dos acontecimentos não a encontrará aqui. Considerando que “a fina teia da lembrança” é urdida de forma “descontínua, fragmentada, desviante e cronologicamente instável”, o autor desenvolve a sua narrativa ao sabor das recordações e assume os seus ideais, apesar de se ancorar nos factos e de enriquecer a obra com anexos que incluem comunicados políticos e documentos judiciais.
O primeiro volume é marcado pela história de uma família com uma notória discrepância de valores entre os ascendentes paternos e maternos, os primeiros tão religiosos e conservadores quanto os segundos eram republicanos e laicos. A carreira profissional do pai, que se formou em Direito e chegou a juiz, determinou uma série de separações e reuniões familiares, ficando as crianças frequentemente entregues a familiares. Após uma infância entre África e Portugal, a separação mais prolongada ocorreu quando o autor e o irmão seguiram de Moçambique para Portugal, enquanto os pais e a irmã partiram para Timor, onde o pai escolhera trabalhar, atraído pela curiosidade por essa terra distante. Infelizmente, a chegada a Díli deu-se no mesmo dia do ano 1939 em que a Alemanha invadiu a Polónia, desencadeando a Segunda Guerra Mundial e a subsequente ocupação militar de Timor Leste, primeiro pelos ditos aliados e depois pelos japoneses, que espalharam o terror pela ilha, matando milhares de pessoas e aprisionando outras, incluindo os familiares do autor, em campos de concentração.
Concluído o primeiro volume com o final da guerra, o reencontro familiar e a admissão do autor na Universidade de Coimbra, o segundo começa com as suas experiências estudantis, para em seguida se centrar na sua vida em Moçambique, onde se estabeleceu como advogado, depois de licenciado e casado, ao mesmo tempo que leccionava e participava em várias iniciativas culturais e políticas. Através do seu olhar, acompanhamos a evolução da sociedade colonial, as manobras da ditadura – incluindo as fraudes nas eleições em que o General Humberto Delgado desafiou Salazar – e o agitado processo independentista, até ao seu regresso a Portugal, um ano e meio após a revolução de 25 de abril de 1974.
Algo que não pode deixar de ser salientado é o facto de o irmão de João Afonso dos Santos ser José Manuel Afonso dos Santos, mais conhecido como Zeca Afonso, cujos cânticos de intervenção marcaram uma geração e continuam a ser uma fonte de inspiração nos dias de hoje. Além de nos oferecerem um testemunho precioso da nossa história contemporânea, estas memórias permitem-nos ainda saber um pouco mais acerca da vida deste grande vulto da cultura portuguesa.
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