Desde que há memória televisiva, até há bem pouco tempo que os domingos de manhã eram passados em família a assistir às corridas de Fórmula 1 e aos videoclipes que passavam nos programas da época. Estávamos em plenos finais dos anos 80 e Ayrton Senna preenchia o grande ecrã, rivalizando posteriormente com os Abba, Art Sullivan, Queen, Tony Bennet e até Ella Fitzgerald. As canções eram repetidas vezes sem fim e, assim, cantarolava-se e gritava-se vitória em cada grande prémio. Estas memórias de domingos renascem quando se assiste ao documentário «Senna», datado de 2010. Asif Kapadia, o realizador, construiu a sua narrativa com base em entrevistas da época, demonstrando assim uma enorme sensibilidade. Foi com base nesta mesma linha de narração que Kapadia partiu para a aventura de documentar a pequena grande vida de Amy Winehouse, que há dias chegou às salas de cinema portuguesas com o título “Amy”.
Desde o início que se percebe que Amy tinha o peso do mundo nos seus ombros. Depois de tanta tinta e caracteres escritos sobre o documentário, há que apreender que cada indivíduo tem as suas emoções. Mais do que tristeza, há uma compaixão desmedida e uma vontade de chegar à tela e abraçar aquele ser humano, e não é pelo sentimento de pena. Há quem consiga dar o grito de Ipiranga e sair vitorioso do seu caos. Depois, há quem se perca no seu interior – no interior do seu eu -, e Amy nunca se conseguiu encontrar na vida terrena.
É através de entrevistas em voz-off que Asif Kapadia guia a sua história, tornando-a digna de uma tragédia grega adaptada ao século XXI. A viagem tem início durante a adolescência desconstruída e desconexa de Amy – nota-se que não há um padrão. Amy apenas queria ser amada e idolatrada pela imagem masculina que criara na sua imaginação. Contudo, ao que parece, nenhum dos homens que amou teve a força e a coragem suficientes para a arrancar daquele limbo – a linha que a separava do sofrimento levando-a à falsa felicidade.
Crescer ao querer sobressair dentro do meio musical, mas ao mesmo tempo não querendo ser uma estrela. Contudo, a star is born, saltando quase de imediato para um contrato milionário com a Universal Records, onde a única preocupação era a ‘construção’ de um novo disco.
Nas entrelinhas, as canções vão aparecendo legendadas entre imagens inéditas que nos fazem arrepiar, as folhas escritas com a sua letra de menina e a sua voz pura e crua. Depois, o despertar para o inimigo público – os tabloides britânicos que conseguem ser mais mortíferos que as tropas afegãs. Daí à espiral do mundo das drogas e do álcool foi um piscar de olhos.
Regressa-se então ao phatos da acção onde surgem duas figuras interlocutoras que nos causam aquela ânsia e revolta: primeiramente o seu pai, Mitch Winehouse, que permanece ausente durante anos e regressa como um fantasma fanfarrão em busca da fama; em segundo lugar, a relação amorosa e doentia por Blake Fielder-Civil, que mais parece um burguês mimado e sem qualquer noção da realidade, na qual pode nascer a vontade bruta de o enviar para a prisão de Guantánamo.
A contribuir com todo este circo de feras está o público em geral que, ao seguir as capas de jornal e ao escutar as piadas fáceis feitas por pseudo-humoristas, paga para ver a degradação da cantora que, convenhamos, se meteu a jeito e sem qualquer super-herói à vista (tirando a própria heroína).
Há ainda um momento que resume toda a história e que determina o desfecho que todos conhecem. Durante a cerimónia de entrega dos Grammy`s, é Tony Bennet que anuncia o nome da cantora enquanto vencedora – o seu ídolo. O rosto de Amy ilumina-se e o seu olhar demonstra toda a sua fragilidade e insegurança. Tal como diz o título do disco de Justin Timberlake (que a própria Amy questiona), what comes around comes around, e Amy confidencia à sua melhor amiga que “este mundo sem drogas não tem piada”.
São várias as interrogações que ficam no ar: a inércia de uns e, também, a sensação de impunidade de outros. Mas já não há nada a fazer. Amy tinha o seu destino traçado, destino esse que foi fugaz e mordaz. A vida tornou-a imortal. Talvez tenha sido melhor assim.
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