Álvaro do Carvalhal (1844-1868) foi vitimado por um aneurisma aos 24 anos de idade, deixando no prelo uma colectânea de contos que não foi bem recebida pela crítica. Decorridos mais de 150 anos após a primeira edição, é feita justiça à memória do autor, com a reedição de “Os Canibais e Outros Contos” (Livros do Brasil, 2021) numa coleção de clássicos da literatura portuguesa.
Esta edição tem a preocupação de apresentar um texto tão próximo quanto possível do publicado em 1868, mantendo os arcaísmos e a pontuação original, mas modernizando a ortografia. A adição de notas explicativas das referências à cultura clássica teria sido, talvez, recomendável, pois o desconhecimento das mesmas, em conjunção com o próprio estilo rebuscado do autor, diferente do que é usual ler-se actualmente, poderá contribuir para afastar potenciais leitores, o que será de lamentar, considerando o grande interesse da obra, a qual ousou explorar o género fantástico, até hoje pouco habitual nas letras portuguesas.
Estes contos estão repletos de pormenores macabros, pressentimentos lúgubres e pesadelos, ou delírios febris, que deixam as personagens incapazes de distinguir a realidade dos produtos das suas mentes. “Os Canibais”, centrado num trágico triângulo amoroso e numa família que se entrega ao canibalismo, primeiro por ignorância e depois intencionalmente, será decerto o texto mais conhecido, devido à adaptação cinematográfica de Manuel de Oliveira. “A Febre do Jogo” mostra como o vício das cartas pode sobrepor-se à amizade e revelar tendências homicidas. Em “J. Moreno”, um jovem troca o amor por uma promissora carreira política, arrependendo-se quando confrontado com uma doença mortal e acabando por assinar um pacto com o Diabo. Em “A Vestal”, a memória das palavras de um falecido amigo misógino envenena a paixão do protagonista, conduzindo-o a uma descoberta que preferiria não fazer. Por sua vez, o protagonista de “O Punhal de Rosaura” é atormentado pelo suicídio da amante desprezada. “Honra Antiga” afasta-se um pouco das outras narrativas por não possuir elementos sobrenaturais, mas a intriga gira em torno de uma transgressão social que acaba punida com a morte de uma forma grotesca, num torvelinho de emoções exacerbadas, típicas do estilo romântico do século XIX.
Como noutras obras do movimento romântico, o ambiente espelha o estado de espírito dos protagonistas. Predominam nevoeiros, tempestades e ventos que se assemelham a “lamentos de almas”. Porém, o autor afasta-se dos cânones românticos ao dotar as personagens femininas de uma sensualidade que não surgia com frequência na literatura da época, indo ao ponto de apontar a “estreiteza de cena a que as egoístas sociedades se apraziam de condenar a mulher”.
Outros laivos de crítica social encontram-se nas referências ao poder do dinheiro e aos constrangimentos que nascem das convenções sociais. Surpreendentemente, também há momentos de humor, tais como uma cena de violência física no parlamento português, em “J. Moreno”, além de certos comentários do narrador e de algumas personagens, incluindo uma que exclama “Suicida-se toda a gente!?”
Álvaro do Carvalhal foi uma voz original no seu tempo e continua a sê-lo hoje. Aproveitemos, pois, esta oportunidade para (re)descobri-lo.
Sem Comentários