Frase breve e sem verbo expresso, Palavra do Senhor é uma aclamação litúrgica, que pode ser entendida como expressão máxima de reconhecimento entre crentes. Para Ana Bárbara Pedrosa, no seu mais recente livro, surge literalmente como mote para a palavra dada a Deus que, em nome próprio, procura repor a integridade da sua acção na criação do universo e dos seres humanos, os quais terão entendido tudo mal: os que o apelidaram de assassino, os que negaram a sua existência, os que viveram e mataram em seu nome.
“Toda a gente tem a sua história. Ou dentro da mesma, cada um encontra a versão que mais lhe convém.”
Em “Palavra do Senhor”, (Bertrand Editora, 2021) Ana Bárbara Pedrosa dá assim voz ao criador, permitindo-lhe contar às gentes quem são, de onde vêm e para onde vão. Este fá-lo quase sempre irritado pelo facto de os humanos não terem percebido o sentido da sua obra, fazendo dele um bode expiatório e instrumentalizando o seu nome, algo que tem valido muito e poupado o trabalho de pensar.
Deus surge como personagem imbuída de emoções, reagindo com ira ao que observa na terra, servindo-se da sua omnipotência e poder déspota. Chega a reconhecer erros cometidos, mas continua a deleitar-se perante a obra feita, que recorda com vaidade e atribui à sua arte e engenharia – mas, acima de tudo, à oportunidade de fazer, destruir e refazer a seu belo prazer. Ai daqueles que ousem afrontar, usurpar ou deturpar a sua titularidade. Irado, invoca então o papel e o poder de pater família, para que fique claro não gostar de ser desafiado. Ao mesmo tempo, Deus observa com algum enfado a repetição acrítica de mitos e rituais. Não terá sido essa a sua intenção quando criou o homem e a mulher, ainda que reconheça ter-se deixado atraiçoar pela pressa e pela vaidade pela própria criação. Em consequência, Adão ficou como um autómato, impulsivo e vaidoso de si próprio, enquanto Eva foi pensada para outra coisa: entender o poder dos detalhes e da sensibilidade. A ambos atribuiu a capacidade de aprender por osmose e de se completarem, percebendo que o que um tinha a mais o outro tinha a menos, “que o anexo tinha uma cavidade por onde entrar”.
“A Palavra do Senhor” foi escrito por alguém com educação católica, que fez o seu caminho de reflexão crítica e que, ainda assim, não menospreza a relevância da religião católica na nossa cultura. O romance que Ana Bárbara Pedrosa agora apresenta parece resultar de uma aturada conjugação de factores culturais, estudo canónico e pensamento critico e meticuloso que lhe permite ir para além da colagem aos dogmas e às verdades vigentes. O resultado assume a forma de uma interpretação romanceada e ficcional do relato bíblico, um Deus humanizado num relato audaz e ainda assim robusto, que conjuga agudeza de espírito e solenidade, algo que só se consegue tendo na base um estudo apurado dos dogmas, ódios, bizarrias e crueldades, condicionamentos vários da vida, especialmente a nível moral e quase sempre por homens em nome de um Deus.
Ana Bárbara Pedrosa parece escrever com espírito livre e desassombrado, servindo-se da sua formação pessoal e académica, de jovem nascida em 1990, com uma vida até agora passada em Portugal, Brasil e Estados Unidos, doutorada em Ciências Humanas, mestre em Estudos Portugueses, pós-graduada em Linguística e em Economia e Políticas Públicas, licenciada em Línguas Aplicadas. Em 2019 já havia publicado, igualmente pela Bertrand Editora, “Lisboa Chão Sagrado”, romance que mereceu o aplauso da critica pelo seu arrojo, honestidade e profundidade.
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