“Há diversas razões pelas quais me foi tão difícil reler um livro meu escrito há sessenta anos, não sendo nenhuma delas motivo de orgulho”. As palavras são de John le Carré (1931-2020), incluídas na introdução da edição comemorativa dos sessenta anos de “Chamada para o Morto” (D. Quixote, 2021 – reedição), publicada pouco antes da morte do escritor. Enquanto procurava por escorregadelas, le Carré diz ter encontrado trechos muito bons, o que o levou a levantar uma importante questão: será este rapaz capaz de escrever assim daqui a uns anos valentes? Em boa verdade, sim. “Um Legado de Espiões”, o último livro dado à estampa em 2017 e que serviu de despedida antecipada a George Smiley, mostrou que o escritor britânico continuava em grande forma.
Ainda na introdução a esta edição comemorativa, le Carré escreve que “tinha feito ilustrações para livros, escrevera maus poemas e um ou dois contos e produzira um par de peças para teatro amador, tendo adquirido um jeito razoável para a caricatura”, o incentivo acabou por vir de John Bingham, romancista, espião e colega de Carré no M15, que tinha critérios apertados de redacção no que dizia respeito a relatórios.
Segundo Carré, estas eram as características maiores de George Smiley: “uma obsessão pela literatura alemã (…), uma vida particularmente infeliz, uma sensação de estar amarrado à passadeira rolante das Informações e não saber como sair dela, e, o mais importante de tudo, graves questões morais em relação ao trabalho que fazia”.
“Chamada para o Morto” foi o primeiro romance protagonizado por George Smiley, escrito em blocos de apontamentos fornecidos pelas Oficinas Gráficas de Sua Majestade, personagem que acabou imortalizada numa série imaculada de romances mas também no grande ecrã, encarnada por actores como Alec Guinness ou Gary Oldman.
Descrito pela mulher – em breve ex-mulher -, Lady Ann Sercomb, como “tremendamente vulgar”. “Baixo, gordo e de temperamento calmo, parecia gastar uma porção de dinheiro em roupa francamente má, que lhe ficava a nadar no corpo atarracado como a pele num sapo encolhido”.
Acabou por ser recrutado pelos Serviços Secretos Britânicos, que o desviaram de uma vida dedicada às obscuridades literárias das Alemanha do século XVII, bem como do prazer genuíno, fugindo às tentações da amizade e da lealdade humanas, o que o levou a detestar “a duplicidade da sua vida”. Ainda assim, ganhou um talento para reconhecer o inimigo e mudar a sua aparência, mesmo que isso lhe tenha valido uma irritação nervosa surgida do medo constante que o acompanhou durante 15 anos, bem como rugas nas faces bochechudas e na testa cavadas pela tensão. Um homem que entrou na meia-idade sem nunca se ter sentido jovem e que, neste arranque de livro, parece condenado ao esquecimento, “queimado, depois de toda a caça na guerra”.
Após uma entrevista de segurança de rotina, Smiley chega à conclusão que Samuel Fennon, um afável funcionário público, não representa grande perigo ou ameaça à segurança britânica. Porém, dias depois este homem do Ministério dos Negócios Estrangeiros aparece morto, e todas as evidências apontam para um suicídio, aparentemente impulsionado pela entrevista de Smiley, que o terá intimidado e conduzido ao esgotamento.
Decidido a apurar a verdade, George Smiley inicia uma investigação por conta própria, procurando a viúva de Fennon para a confrontar. Quando partilha as suas inquietações com Matson, o seu superior, é prontamente afastado da investigação, sendo o despedimento futuro o cenário mais provável. Nesse mesmo dia, um outro estranho acontecimento tem lugar: uma carta urgente do falecido chega-lhe às mãos. George Smiley está assim por conta própria e, aquilo que parecia ser matéria para um romance menor e um estrondoso falhanço enquanto agente, acabou por se transformar em matéria para uma carreira literária. Celebremos pois George Smiley, um anti-Bond por natureza, às voltas com espiões e agentes duplos, naquela que é provavelmente a melhor série literária de espionagem que já foi escrita – num total de nove livros, incluindo esta “Chamada para o Morto”.
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