Muitos livros têm detectives atormentados por demónios interiores como protagonistas, mas “O Deus das Moscas Tem Fome” (Saída de Emergência, 2021) distingue-se ao apresentar um herói, Benjamim Tormenta, cujo demónio não é uma figura de estilo. É uma entidade milenar com muitos nomes, mais frequentemente chamada Lamashtu, aprisionada na carne do seu hospedeiro por extensas tatuagens de “símbolos místicos, encantamentos e letras de alfabetos esquecidos”, controlada por intermédio de ópio e agulhas, mas ansiosa por se libertar e espalhar a destruição.
Este é o primeiro livro da autoria de Luís Corte Real, fundador da editora Saída de Emergência e criador da Coleção Bang!, a qual tem vindo a publicar o melhor da literatura fantástica e agora adiciona este título ao seu catálogo. Entre as influências reconhecíveis e assumidas, encontram-se nomes como H. P. Lovecraft, Arthur Conan Doyle, Mike Mignola, Edgar P. Jacobs, George Lucas e Eça de Queiroz, que até surge como personagem.
A obra é composta por uma sequência de contos, cada um com uma dedicatória particular, uma aventura e uma peça do puzzle que é a existência de Benjamim Tormenta. O conjunto cria um universo fascinante, centrado na Lisboa do século XIX, mas afasta-se da História que julgamos conhecer, para nos apresentar um ambiente gótico que inclui sociedades secretas, jóias mágicas, bruxas, monstros de outras dimensões, parasitas caídos dos confins do cosmos e livros amaldiçoados, reescrevendo o passado ao ponto de apresentar uma explicação alternativa para o processo dos Távoras. Embora o primeiro conto se passe em Macau, a acção depressa transita para Lisboa, cidade descrita com tal vividez que se torna uma personagem marcante. Das ruelas esconsas às mansões da classe alta, Benjamim Tormenta, um homem elegante de idade indefinida, famoso pelos seus dotes de bruxeiro, ou detective do oculto, investiga casos que desafiam as ciências naturais. Conhecedor do que se move “nas sombras vis das cidades, nos submundos da lógica e das ciências, nas cavernas escuras sob o piso da civilização”, protege os cidadãos comuns dos horrores ocultos sob “o manto diáfano de realidade”, ao mesmo tempo que defende os interesses do Reino de Portugal, cruzando-se com personagens históricas como o Rei D. Luís e o governante Fontes Pereira de Melo, além do já referido Eça de Queiroz.
Entre as lutas contra inimigos visíveis, que são como bailados coreografados, o homem e o seu demónio travam entre si uma guerra impiedosa pelo controlo do destino de ambos, ainda que sejam com frequência obrigados a cooperar em nome da sobrevivência mútua. Para preservar o hospedeiro cuja morte seria também a sua, Lamashtu amplia a percepção de Tormenta e dota-o de capacidades sobre-humanas. As origens desta ligação não chegam a ser esclarecidas, bem como os laços que unem o detective a personagens secundárias interessantes, como o seu fiel servidor indiano, Adama Ramanujan, ou a bela e inteligente Felícia Augusta, dona de um bordel que recebe a nata da sociedade. Esta estreia auspiciosa, que promete ser o início de uma saga, contém a dose certa de mistério e os demais ingredientes necessários para deixar o leitor com fome de mais contos para saciar a curiosidade.
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