Um pouco como os chapéus, pode dizer-se que missões há muitas, independentemente de gostos, convicções ou chamamentos. Nascida em Lisboa no ano de 1970, Gabriela Ruivo Trindade levou para casa o Prémio LeYa em 2013, à boleia do romance de estreia “Uma Outra Voz”, também distinguido com o PEN Clube Português Primeira Obra (ex-aequo) em 2015. Para os mais novos publicou, em 2016, o conto infantil “A Vaca Leitora”, tendo participado em diversas antologias de poesia e conto. Por falar em poesia, lançou em 2019 “Aves Migratórias”, um livro em 6 andamentos onde, entre muitos e bons versos, podemos avistar animais marinhos ou ficar maravilhados perante o silêncio. Colabora com a Capitolina, uma publicação de literatura em língua portuguesa com edição de Nara Vidal e, de tempos a tempos – menos do que devia -, vai alimentando um blogue. Pelo meio, vai vivendo pacatamente a sua vida de emigrante.
A viver na cinzenta Londres desde o ano de 2004, a escritora portuguesa encontrou a sua missão por volta de 2018, ano em que se tornou proprietária da Miúda Books, fundada em Londres em 2015 por Carla Cruz – na altura, o resultado de uma frustração pessoal de Carla com a falta de acesso a livros infantis para a sua filha pequena.
Falar da Miúda Books é falar de uma livraria virtual de literatura infantil lusófona, sediada em Londres, que tem levado o melhor da literatura infantil escrita em português a crianças grandes e pequenas do Reino Unido – e outros interessados de qualquer um dos quatro cantos do planeta. Para sabermos mais sobre esta missão de vida com espírito de serviço público, colocámos algumas questões a esta miúda chamada Gabriela Ruivo Trindade.
A Miúda Books foi uma herança que te veio parar às mãos e que, desde então, trataste de cuidar orgulhosamente como uma filha que prefere os livros à televisão?
Ahah, pode dizer-se que é a filha que não tenho – tenho dois rapazes. Sim, é uma Miúda exigente, que tenho acarinhado e alimentado com muito gosto, e que não gosta nada, nada, de televisão. O que é óptimo.
Pode dizer-se que esta tua missão nasceu, em parte, das saudades que vais tendo do nosso desordenado, mas quase sempre soalheiro, Portugal?
Nasceu, essencialmente, da vontade de ver este projecto continuar – porque a Carla não podia levá-lo adiante – e da minha paixão pelos livros infantis. Os livros infantis deviam ser de leitura obrigatória para adultos (risos).
Como é ter dois filhos e ter-lhes ensinado, quase desde o berço, duas línguas diferentes? Não é o mesmo que dizer-lhes que podemos gostar ao mesmo tempo do Porto e do Benfica?
Foram experiências diferentes, porque o mais velho chegou aqui com 5 anos – já falava – e o mais novo com 1 – estava a começar a falar. Não somos nós que ensinamos os miúdos a falar – isso é algo que se torna evidente quando mudamos de língua – é o mundo que os ensina. O meu mais novo começou a falar inglês sem eu me aperceber, estava sempre comigo e eu falava sempre em português com ele – e ele um dia saiu-se com uma grande conversa com a educadora que veio a nossa casa entrevistar-nos para a creche (é um protocolo daqui), isto depois de eu ter afiançado que ele não falava inglês. O queixo caiu-me, literalmente, enquanto a senhora dizia, mas ele fala muito bem, tem um vocabulário muito rico! Well done! E eu, de boca aberta. Depois, há coisas engraçadas, por exemplo, os miúdos, quando deixam de ter contacto permanente com a língua materna, regridem um pouco, e começam a dizer aquelas coisas que as crianças dizem quando estão a aprender a falar (eu ouvo, em vez de eu oiço), e às vezes fazem associações giríssimas entre os sons – foi assim que nasceu a Vaca Leitora, que foi a maneira que o meu filho mais novo encontrou para dizer vaca leiteira. Isto porque, segundo ele, desde pequenino, leitura parece que vem de leite, e leitor é quem ordenha a vaca. Enfim, mudar de língua é um mergulho num mundo de fantasia e imaginação. Muitas das coisas até já esqueci, mas devem estar todas registadas no Far Far Away, o meu primeiro blog.
O que podemos encontrar no catálogo da Miúda Books?
Livros, livros e mais livros! De autores de língua portuguesa (portugueses, brasileiros e africanos). Todos para crianças dos 0 aos 100.
E há espaço em casa para guardar tudo isso?
Pois, essa parte é complicada. Vai havendo, com livros em segunda fila nas estantes… Não posso ter muitos livros em casa, então tenho sempre pouco stock.
Como tem sido a relação com as editoras? E com quantas trabalhas actualmente?
Tenho livros da Caminho, D. Quixote, Orfeu Negro, Pato Lógico, Planeta Tangerina, Máquina de Voar, Paleta de Letras, Porto Editora, Kalandraka, Tcharan, Livros Horizonte, Gatafunho, Alfarroba, Imprensa Nacional, Barca do Inferno, Escaravelho, Petit Publisher, Inverso (Brasil), Xerefé, The Poets and Dragons Society, Falas Afrikanas, Biblioteca Infantil de Roterdão e muitas, muitas edições de autor. A Miúda tem-me dado a conhecer muito mundo na literatura infantil. É um privilégio poder contactar com tantos autores e editoras.
O confinamento aumentou as vendas ou o negócio continua como anteriormente?
Aumentou. Eu vendo muito pouco, mas aumentou substancialmente. Tenho vendido mais para aqui, mas também para os Estados Unidos. Imagino que estar sempre em casa com os miúdos tenha feito os pais comprarem mais livros.
Para além da livraria online, de que outras formas actua esta Miúda como divulgadora cultural?
Por estes tempos tem estado um pouco parada, com o confinamento. Quando peguei na Miúda fiz a rubrica Um Livro Por Dia no blog da loja, em que resenhava um dos livros que aqui tinha, e isto ainda durou alguns meses, excepto fins de semana. Mas deixei de ter tempo, só tenho mesmo para colocar os livros online e ir publicitando nas redes sociais. Ser só uma pessoa a trabalhar não dá grande margem de manobra.
Sonhas tendo o sotaque britânico como banda sonora ou é a língua de Pessoa que te acompanha enquanto dormes?
Sabes que não sei? Não tenho memória sonora dos meus sonhos, não sei em que língua falam eles. Talvez numa língua privada…
Desenha-nos Londres com um verso teu.
Um verso não me ocorre, mas Londres, como a Inglaterra, é o reino dos contrários. Os carros andam do lado oposto da estrada, temos de meter as mudanças com a outra mão, olhar para o lado contrário da rua quando queremos atravessar, as torneiras às vezes abrem para o outro lado e as portas também. Os botões do fogão por vezes também nos trocam as voltas. E as milhas, e os pés, as jardas, as libras… Uma pessoa tem de fazer várias inversões de perspectiva.
Em 2013 ganhaste o Prémio LeYa. Quando é que Uma Outra Voz te vai levar de volta ao romance?
O romance já está escrito, só ainda não encontrou editora. O próximo livro é uma colectânea de contos, Espécies Protegidas, a sair ainda este ano pela editora On y va.
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