“Partimos quando já nada temos por que ficar, vamos para onde podemos ser úteis, para onde nos aceitam.”
Em nome dos seus sonhos e de um desejo irreprimível de ser livre e feliz, Deborah Feldman abandonou a comunidade religiosa satmar onde nasceu e viveu mais de 20 anos, tal como a mãe se vira obrigada a fazer antes, deixando-a para trás. A sua história é narrada na fascinante autobiografia “Unorthodox: A Verdadeira História das Minhas Raízes” (Editorial Presença, 2020).
Satmar é o nome de uma seita judia ultraortodoxa, fundada por um sobrevivente da segunda guerra mundial que emigrou da Europa para os Estados Unidos da América e aí defendeu que o Holocausto representara um castigo de Deus pelo abandono dos velhos costumes, pela assimilação e pelo sionismo. Para os seus membros, a procriação é essencial para repor o número dos que pereceram e o quotidiano é regulado por normas estritas que abrangem o vestuário, a alimentação, as manifestações religiosas e as relações humanas.
Neste mundo, Deborah carrega o fardo da desgraça desde o nascimento: o pai sofre de problemas mentais para os quais nunca foi procurado tratamento, pois isso seria visto como uma fuga ao sofrimento que Deus achou que a família merecia, enquanto a mãe veio de uma família judia inglesa pobre, com poucas perspectivas, para ser entregue a este homem difícil de casar e, assim, permitir que os irmãos mais novos celebrassem em seguida os seus matrimónios.
Deborah cresce sedenta de aceitação social num meio onde não há abraços nem beijos. Em vez disso, todos se observam atentamente, “sempre prontos a apontar as fraquezas espirituais ou físicas”, como sinal de “compaixão pelo bem-estar espiritual”. Parte dela deseja ser vista como “uma boa rapariga” ou, mais tarde, “uma dona de casa obediente”. Todavia, outra parte deseja viajar, alargar horizontes, aprender e, acima de tudo, ser dona de si própria. O primeiro escape que encontra é a literatura, graças a uma biblioteca pública cujos livros esconde no quarto, para devorar nos momentos de solidão. Em casa, até os volumes em hebraico sobre religião são mantidos pelo avô num armário fechado à chave, uma vez que se destinam apenas a homens e “o lugar das raparigas é na cozinha”. A própria comunicação em inglês é censurada, porque todas as línguas além do iídiche são impuras. A educação é limitada ao estritamente necessário, apregoando-se que “não leva a nada de bom”. Felizmente para Deborah, o seu espírito crítico cedo lhe permite detectar as contradições desta sociedade e perceber as possibilidades de sobrevivência no exterior que a educação lhe poderia dar.
Este é um testemunho corajoso, escrito depois de um casamento infeliz e do nascimento de um filho, enquanto Deborah se esforçava por concluir estudos superiores. Representou o “bilhete de saída” que lhe permitiu libertar-se de constrangimentos financeiros e cortar definitivamente os laços com a comunidade de origem. Mais do que uma história de vida, é o retrato surpreendente de um mundo paralelo àquele no qual a maioria de nós vive e da forma como as pessoas podem ser arrastadas por uma forte corrente de antiquíssimas tradições.
Sem Comentários