Recorda-se dos estranhos dias do primeiro confinamento de 2020, altura em que todo o mundo se tornou outro? O casal Djaimilia Pereira de Almeida e Humberto Brito, ela escritora, ele fotógrafo e professor, criaram juntos uma espécie de registo, um dueto em palavras e fotografias, chamado “Regras de Isolamento” (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2020).
O livro reúne textos de várias proveniências. Inevitavelmente, o registo varia: encontramos crónicas feitas a partir de observações atentas; personagens de bairro desenhadas com frases certeiras e emoções contidas; caminhadas pelas ruas desertas de uma Lisboa em tensão, coagulada pelo medo; domingos que preguiçam com vagar, indolentes; viúvas enclausuradas como reclusos, rostos de um isolamento mais antigo.
Autora de romances como “Esse Cabelo” e “Luanda, Lisboa, Paraíso”, Djaimilia Pereira de Almeida escreve com sensibilidade e contenção – todas as páginas vibram com uma atmosfera de melancolia poética, e um sentido de observação astuto, seja qual for o objecto da curiosidade. Assim é com a velha cadela labrador do bairro, por exemplo – “em duas horas de uma manhã, fazendo o que faz todo o santo dia, ela nasce, vive e morre, enfim, à porta do café, onde aterra de cansaço junto ao letreiro dos gelados: cada passeio, uma vida com direito a surpresas, revezes, traição e gozo. E tudo recomeça na manhã seguinte, porque a seguir à vida não vem senão tudo de novo: a surpresa toda outra vez, toda a mesma deliciosa rotina”.
Há ainda espaço para a ficção poética, num apurado exercício de estilo que nos leva a calcorrear toda a Lisboa com um homem perdido, Luciano. A seu lado marcha um enorme tigre branco, um tigre particular, que ninguém vê, só o dono. “O tigre era o seu abrigo, e Luciano o homem medroso, habitante da caverna que era o tigre”.
Noutros pontos descobre-se um gosto particular em pensar e falar sobre fotografia, sobre as histórias por detrás das imagens. Há um texto magnífico sobre “Pictures From Home”, o livro que o fotógrafo Larry Sultan construiu só com fotografias dos seus pais, que serve de pretexto para ensaiar uma resposta à pergunta: para que serve a fotografia?
As imagens de Humberto Brito, instantâneos a preto e branco retirados do mesmo quotidiano de bairro, mostram figuras solitárias sob densas folhagens, jardins em desalinho, árvores ancestrais, despidas de folhas e iluminadas contra um fundo negro, como pulmões. Ou então viram-se para o interior da casa, retratando objetos como naturezas mortas – um cinzeiro, uma tesoura, um disco de Miles Davis ao lado de uma faca e dois copos com gelo. O velho cão do casal, a dormitar no sofá. Uma das fotos mostra Djaimilia de olhos fechados, como quem sonha.
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