É um homem de muitos fôlegos. Ao longo dos últimos 30 anos, o saxofonista João Cabrita tocou ao serviço de uma constelação abundante de artistas – dos Sitiados aos Despe e Siga, de Sérgio Godinho a Caetano Veloso, dos Virgem Suta aos Kussondulola.
Cabrita é um cúmplice habitual de Paulo “Legendary Tigerman” Furtado: “Misfit”, disco de 2017 do homem-tigre, contou com o saxofonista como peça fundamental. O músico alinha ainda com os Cais Sodré Funk Connection, onde o groove do seu saxofone é o rastilho para explosões de funk buliçoso. Mesmo com este currículo extenso, Cabrita tem-se mantido relativamente ausente dos holofotes da cena mediática.
“Cabrita” (Omnichord Records, 2020), álbum em nome próprio, mostra o saxofonista pela primeira vez na linha da frente. Lançado no início de Outubro do ano passado, o disco reflete o seu vasto reportório de afinidades musicais: Cabrita rodeou-se de amigos para gravar dez temas maioritariamente instrumentais, sempre com o saxofone como motor pulsante debaixo do capot.
É um disco híbrido, assumidamente colaborativo, em que as faixas integram a personalidade musical dos convidados. O coração de “Afronauts Lament”, por exemplo, é a bateria inventiva de Hélio Morais, um dos bateristas dos PAUS. O ritmo de raízes africanas cruza-se com teclas psicadélicas, num tema banhado em funk – próximo das paisagens jazzísticas do americano Kamasi Washington.
O genial guitarrista/cangalheiro Tó Trips – dos extintos Dead Combo – faz a sua aparição em “Dancing With Bullets”, carregando com ele a atmosfera tex-mex fumarenta do seu antigo dueto, com a guitarra vadia em animado diálogo com o saxofone.
Neste disco celebratório não podia faltar o Tigerman: “Caravan” é feito da mesma matéria-prima que “Misfit”, com a guitarra inconfundível de Furtado a serpentear pelo tema. É um road movie poeirento, cheio de rufias e malandros, abrilhantado por um solo de sax escaldante de Cabrita.
Em quase todo o disco avistamos as cinemáticas paisagens da América – veja-se a guitarra envolvente de “Desperado”, ou o tema feito a meias com Sam The Kid, “We Andrea”, onde vestimos o nosso melhor fato para entrar num casino brilhante de Las Vegas.
“Cabrita” é um álbum heterogéneo: além da electricidade rock n’roll, em certos pontos ouvimos o novo jazz britânico de uns The Comet Is Coming, como no energético “SOS” ou no psicadelismo de “Afronauts Lament”. Noutros há o relaxamento próprio das latitudes tropicais, como no descontraído “Farai” ou em “Never Gonna Give It Up”, um passeio pelas tórridas praias brasileiras.
A cola que une toda esta diversidade é o saxofone camaleónico do músico lisboeta, cheio de vivacidade e atitude. Cabrita está tão à vontade no descarnado “Whatever Blues” – banda sonora para uma femme fatale em rodopio no varão-, como nos riffs e ganchos mais roqueiros de “Snake Eyes”, por exemplo. Correndo o risco de sermos admoestados pela DGS, não podemos deixar de o dizer: este disco é uma festa.
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