“Cálice”, de Luís Carmelo (Abysmo, 2020), é um livro sobre a memória, esse comboio invisível – na concepção do autor – que nos leva numa viagem às origens, às reminiscências e aos laços. Como nalgumas viagens físicas, por muito que a planeemos e tentemos controlar, o itinerário acaba por ser definido etapa a etapa com as vibrações da emoção.
“Recuar na memória é cicatrizar a escuridão“.
“Cálice” é um livro surpreendente, pelo arranjo e pelo arrojo lexical, lançado publicamente no último festival literário Correntes d´Escritas, mesmo antes da pandemia nos ter confinado. Complementado por “Ciclone”, no prelo, materializam em conjunto o desafio do autor de regresso às origens em diálogo com as figuras do pai e da mãe. Uma tarefa pelo próprio sentida como difícil e complexa, pela especial activação e sistematização de experiências e de subjectividade, partindo de dados concretos, vividos, para uma exposição da biografia que, de alguma forma, pode ser considerada poética.
Trata-se de um livro dividido em três partes, numa trajectória que passa por três gerações de uma família, acompanhando as suas metamorfoses e a procura de sentido e sobrevivência. O relato começa em plena ditadura, nos anos 30, com a escola, os pais, as sucessivas casas, o misticismo e o sonho de Álvaro G., personagem enigmática que partilha excertos de memórias secundados por reflexões intimistas, muitas vezes poéticas, outras tantas pragmáticas, sendo esse, talvez, um dos mais interessantes traços do autor: a sua capacidade de adornar o quotidiano, retirando-lhe banalidade e acrescentando-lhe interioridade.
Décadas à frente, outra geração de gente continua a trajectória da família, da procura de um sentido para a própria existência. Outros tempos mas com a mesma carga reflexiva, e um poder de observação que integra o passado nas escolhas de futuro. Desta vez é Celeste, uma jovem adulta, que comanda o relato, procurando em Lisboa retomar o contacto com os locais e o sentido de gentes idas, às quais se sente ligada apesar de ter nascido fora de Portugal. Há, no seu olhar pela cidade e pela história do país, uma reconstrução pessoal, uma procura de sentido para o futuro e o encontro de uma linha que segure os fragmentos da sua identidade. Afinal, “o passado coagula, o presente é uma propensão e o futuro pende em linha quebrada“.
Luís Carmelo é um escritor português, nascido em Évora (1954). Doutorado em semiótica pela Universidade de Utreque (Holanda), aé utor de uma vasta obra que inclui dezena e meia de romances, diversos ensaios e alguns volumes de poesia. Está editado em Portugal, no Brasil, em Espanha, na Holanda e na Colômbia. A mais recente trilogia, composta pelos romances Gnaisse (2015), Por Mão Própria (2016) e Sísifo (2017), foi editada pela Editora Abysmo. Venceu o Prémio de Ensaio da Associação Portuguesa de Escritores, em 1988, e foi finalista de vários outros galardões.
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