Nascido em 1932 na Alessandria (Itália), o filósofo, medievalista e semiólogo Umberto Eco estreou-se na narrativa com o soberbo “O Nome da Rosa”, corria então o ano de 1981. Desde então, a sua actividade literária ao nível do romance tem mantido uma regularidade ao nível de uns Massive Attack, editando pouco mas, quase sempre, com grande acerto, como o provam “O Pêndulo de Foucault” ou “A Misteriosa Chama da Rainha Loana”. Além dos romances Eco tem-se celebrizado pelas numerosas obras ensaísticas que tem editado, para além de ter organizado alguns dos mais belos livros lançados: “História da Beleza”, “História do Feio” e “História das Terras e dos Lugares Lendários”.
Observador atento dos fenómenos e tendências jornalísticas, Umberto Eco publicou este ano “Número Zero” (Gradiva, 2015), uma paródia literária, algures entre a comédia, o mistério e a esquizofrenia, ao mau jornalismo que vai tomando conta de muito boa redacção, seja em nome da sobrevivência ou, simplesmente, do puro mau gosto.
A história é-nos contada pelo Dr. Colonna, recuando aos tempos em que foi convidado para editor do jornal “Amanhã”, um jornal que, mais do que ver a luz do dia – a ideia era até deixá-lo eternamente nas sombras, longe de qualquer máquina de impressão -, se destinava a servir de um meio de chantagem, intriga e veículo de reportagens ignóbeis. Os elementos do público-alvo estão bem definidos: «…mais de cinquenta anos, (…) bons e honestos burgueses, desejosos de lei e de ordem, mas gulosos por bisbilhotices e revelações sobre diversas formas de desordem.» Em paralelo, Colonna irá também escrever um livro intitulado “Amanhã: Ontem”, também ele uma forma de chantagem plantada como biografia de um mundo paralelo.
Único conhecedor do verdadeiro destino do jornal, Colonna irá trabalhar com um estranho grupo de jornalistas, onde pontifica a carismática figura de Braggadocio, um redactor paranóico que, circulando numa Milão que já não deveria existir, reconstrói uma história com já cinquenta anos e que tem, como pano de fundo, um plano arquitectado em torno do cadáver putrefacto de um pseudo-Mussolini. Pelo meio surgem a CIA, os terroristas vermelhos, os serviços secretos, vinte anos de massacres e pistas falsas e um conjunto considerável de factos inexplicáveis.
Mas há também Maia, uma quase licenciada que sofre de uma estirpe de autismo, que adora interpretar anúncios matrimoniais e atira bocas quase sempre ao lado, por quem Colonna se irá apaixonar num sentimento entre a responsabilidade parental e o desejo puro e animalesco.
Em pouco mais de 160 páginas, Umberto Eco apresenta-nos um mapa do jornalismo actual, onde não é esquecida a importância do estabelecimento de uma agenda, a colocação de notícias fragmentárias debaixo de um mesmo chapéu para obrigar o leitor a olhar, o triunfo do desmentido, a estratégia das fontes confidenciais, a arma letal da insinuação e o seguimento de máximas tão triunfais quanto esta: «Para rebater uma acusação, não é necessário provar o contrário, basta deslegitimar o acusador.»
“Número Zero” deixa o leitor/jornalista numa encruzilhada, tendo de decidir se quer continuar a aproximar-se de um jornalismo de terceiro mundo ou, assumindo o possível risco de extinção, de uma ética e credível busca da verdade. Um jornalismo que acaba, decididamente, por ser um reflexo da própria existência humana. «A vida é suportável, basta conformarmo-nos», lê-se a certa altura. Será (apenas) isto que queremos para as nossas vidas?
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