(Textos breves sobre livros lidos em 2020)
“Ministério da Solidão” | Renato Filipe Cardoso
Editora: Sexto Sentido
Um livro com o seu quê de Monsieur Jacques Tati, na forma como o corpo é convidado à acção e o quotidiano se transforma em comédia, seja no comparecer para uma sessão de radiografias ou quando se aceita a inevitabilidade de “existir do avesso dentro do próprio carrossel“. Há crianças a escrever o mundo a lápis, versos levantados como halteres, homens colhidos por comboios, “b.b. king a lavar pratos e Voltaire a limpá-los”, ressurreições ao segundo dia (se a ressaca não dor demasiado severa), autos de fé e uma anti-religiosidade para dar e vender, Alzheimer, muitos decilitros de vinho e medo de que o futuro não aceite devoluções, o que faz com que estes poemas se leiam como uma espécie de “sinalética do quotidiano“.
“A Menina dos Anos” | Haruki Murakami
Editora: Casa das Letras
Edição ilustrada, em capa dura e com desenhos com um certo toque de pop art dominado pelos rosas e os vermelhos, de um enigmático conto do japonês Haruki Murakami, protagonizado por uma jovem que serve às mesas num restaurante italiano muito afamado e que verá a sua vida mudar no dia do seu 20º aniversário. Tudo porque, na ausência da empregada habitual, se vê responsável por cumprir um ritual diário exigido pelo proprietário do restaurante, que reside no 6º andar do edifício: levar, às oito da noite em ponto, um prato sempre diferente mas sempre confeccionado à base de galinha. Um livro onde a curiosidade leva a melhor e que deixa uma interrogação pertinente, ao estilo de uma lâmpada mágica: o que farias se tivesses um desejo para utilizar?
“Tropel” | Manuel Jorge Marmelo
Editora: Porto Editora
Grande regresso de Manuel Jorge Marmelo ao mundo do romance, numa história centrada num grupo de caçadores impiedosos que assumiu a responsabilidade e o dever de livrar o país da chegada de imigrantes. Um mundo do qual é difícil escapar mesmo que a motivação de mudança esteja lá, algures, enterrada num local ermo longe do ADN familiar, por alguém que se viu obrigado a colocar um fim precoce à adolescência e a olhar a sensibilidade e a empatia como pecados capitais. Justifica-se o injustificável com recurso à palavra divina, leva-se a violência doméstica em ombros, cultiva-se o racismo, recita-se um discurso de ódio que, também fora do alcance do mundo ficcional, começa a conquistar muitos seguidores. Um parente literário do Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati, – citado por aqui – que mergulha num lugar ermo e violento, apontando uma caçadeira ao lado mais vil da condição humana.
“Uma Ida ao Motel” | Bruno Vieira Amaral
Editora: Quetzal
Bruno Vieira Amaral continua a surpreender-nos com histórias sobre famílias dos bairros suburbanos, num puzzle das periferias onde descobrimos Rosário, ouvinte de cantoras românticas, presa numa vida inútil com um marido que nunca lhe disse que era bonita; Filipe, alguém que “por superstição e humildade deliberada” não cospe para o ar; Irina, de férias num monte alentejano, que sonha acordada com a praia; ou Judite, que crê estar protegida contra “a espécie mais perigosa de homens” – os bonitos. Amor e desamor, crendices, mágoas, esperança e a falta dela, desejos de transformação e reinvenção, loucura, desamparo e ressentimento, obsessão, violência e vislumbres de felicidade, tudo se experiencia neste Motel de check in obrigatório.
“O Ano do Macaco” | Patti Smith
Editora: Quetzal
“O Ano do Macaco” divide-se entre a ideia de um romance psicadélico, um biografia sonhada e um registo de diário com laivos de redenção. No ano em que celebra o seu 70º aniversário, Patti Smith leva-nos numa viagem por uma vida – a sua – cheia, através de um sono mal dormido propício a sonhos onde os objectos falam e os mortos conversam. Tendo como perda maior o desaparecimento de Sam Shepard e Sandy Pearlman, amigos de longa data, abrimos embalagens de guloseimas falsas, falamos com uma tabuleta que noutro hemisfério seria o Chapeleiro Louco, assistimos a animadas discussões sobre o “2666” de Bolaño, conhecemos as principais inquietações e desalentos de Patti, pouco confiante num mundo feito de “ciclos de morte e ressurreição“. Uma bonita edição em capa dura que chega com muitas fotografias e o selo da Quetzal.
“Felicidade” | João Tordo”
Editora: Companhia das Letras
Neste romance com uma pitada extra de sobrenatural, que parece ter partido de uma visão das irmãs Lisbon arrancada ao romance de Jeffrey Eugenides, João Tordo inventou um personagem do qual é difícil gostar. Um homem que, a partir de um acontecimento traumático vivido na despreocupada adolescência, fica preso entre dois mundos, incapaz de alcançar a Felicidade ou de permitir que esta ilumine os que estão à sua volta. Um livro onde há lugar para a mitologia, mortos que envenenam, a história portuguesa em tempos de revolução, a inutilidade e a injustiça da Guerra Colonial, os primeiros Adidas, as cassetes e os cartazes trocados no pátio da escola, Vitorino Nemésio em grande no pequeno ecrã, muito Benfica, Tonicha a dar cartas no Festival da Canção, carcaças barradas com manteiga e todos os imponderáveis da vida, como aquele momento decisivo em que, passada a criancice, se cava um fosso nas amizades construídas durante aquilo que parece ter sido uma vida, entrando-se no “mundo cruel dos pré-adultos” onde é difícil evitar uma existência “na periferia de quem deveríamos ser“.
“A Lição do Sonâmbulo” | Frederico Pedreira
Editora: Companhia das Ilhas
Uma autobiografia espiritual, romanceada e muito corajosa, onde Frederico Pedreira nos convida a conhecer a sua infância em momentos de grande cinefilia: o medo da casa dos avós, os discos de Sinatra oferecidos pela mãe hospedeira para compensar as muitas ausências, a descoberta das lombadas dos livros (e do que estes escondem dentro de si), as telenovelas brasileiras, a praia de Santo Amaro de Oeiras, o fascínio por escavadoras, os filmes vistos às escondidas com a tia porreira – como o Rambo -, que lhe oferece uma sunga com pintas de leopardo, a relação obsessiva com o corpo e as pernas de ar feminino, a pancada por casacos de cabedal, a revista Bravo e os seus posters e autocolantes, as peta zetas e os cigarros de chocolate, o primeiro walkman e a consola spectrum, culminando na rejeição da educação burguesa e os desejos de uma segunda educação, que o atire para longe de uma vida familiar que parece ter sido realizada por Cassavetes.
“Escrever” | Stephen King
Editora: Bertrand Editora
Se andam à procura de um manual que vos estimule e guie a produção literária, “Escrever” é um verdadeiro achado. Partindo da experiência pessoal e estimulado por um acidente que quase lhe tirou a vida, Stephen King cruza a autobiografia com dicas práticas, mostrando como transformar o acto de escrita num verdadeiro trabalho – mas isto apenas para aqueles que possuem já o talento da escrita. Afinal, “o equipamento vem na embalagem original“. Dividido em duas metades, acompanhamos primeiro o percurso turbulento que levou King a tornar-se num dos escritores mais reconhecidos, vendidos e adaptados a filme do planeta, para entrarmos depois no território mais prático, com conselhos práticos e inspiradores que vão do desenvolvimento da intriga e da criação das personagens à forma de fintar a sempre complicada indústria literária. Um dos grandes livros de não ficção do ano.
“Que nós estamos aqui” | João Tordo
Editora: Fundação Francisco Manuel dos Santos
Para quem apenas conhece João Tordo do universo dos romances, eis uma derivação que versa sobre os Alcóolicos Anónimos (os AA) e o método dos Doze Passos, criado com uma religiosidade geométrica mas que tem conseguido ajudar até o mais dedicado ateu. Entrevistas, experiências pessoais e leituras servem a Tordo para um mergulho ensaístico no mundo das adições, onde ressalta a história algo mirabolante de Bill Wilson, co-fundador dos AA, que tanto foi Deus como o Diabo para aqueles que seguiram à risca (ou quase) os Passos por ele escritos depois de um momento de iluminação.
“As Paredes Eram Brancas” | Max Moreno
Editora: Clube de Autores
Uma policial atravessado pela loucura que revela uma trama bem elaborada, muita tensão e ainda mais reviravoltas, levando o leitor a percorrer a cidade do Paraná e o interior de São Paulo. O real e o imaginário confundem-se num thriller que tem no centro David, um adolescente de 13 anos que se vê acusado de matar o pai, um alcoólico que muitas vezes se dedicava a espancar a mulher, e que acabará por ser trancado num hospital psiquiátrico. Um drama existencial cheio de pontas soltas e dramas existenciais que caberá ao leitor desvendar.
“A Educação dos Gafanhotos” | David Machado
Editora: D. Quixote
Sempre com o 11 de Setembro em pano de fundo, David Machado escreveu um livro sobre a amizade em estado de irrequieta juventude, na busca de vidas alternativas e de uma viagem que nunca acabe, num loop que almeja alcançar uma imortalidade de sentimentos que afaste a existência de uma vida em manada e marcada pela banalidade. Mas não poderá ser também o regresso a maior das viagens?
“O Golfinho” | Mark Haddon
Editora: Porto Editora
A partir da história de uma recém-nascida, a única sobrevivente de um desastre aéreo que será criada em total isolamento e apenas conhece o que está nos livros, Mark Haddon escreveu um romance que combina realidade e mitologia, sempre com o mar no horizonte. Um livro com uma série de linhas temporais e narrativas onde se descobrem deusas vingativas, a Londres de Shakespeare, ninfas com dotes protectores, mitos para dar e vender, as perigosas Parcas e o salvador Péricles, o príncipe de Tiro. Uma estranha aventura que exige um fôlego extra da parte do leitor, que assistirá à capacidade de renovação de histórias que são (re)escritas de acordo com o seu tempo.
“À Espera de Fernanda” | Maria Cláudia Rodrigues
Editora: Suma de Letras
Um livro entre a investigação jornalística e o romance, inspirado na história real de um rapaz encontrado morto aos 24 anos e na luta titânica dos seus pais na procura de justiça. As autoridades falam em suicídio e apressam o funeral, mas os pais acreditam que há algo mais por contar, decidindo gastar o que têm e não têm para apurar toda a verdade sobre o fatal destino encontrado pelo filho, para quem parecia estar reservado um futuro promissor. Um olhar sobre o mundo da justiça, muitas vezes habitado por advogados-sanguessugas e procuradores distraídos, onde são os mais abonados e melhor posicionados que vão dando cartas.
“A Ocupação” | Julián Fuks
Editora: Companhia das Letras
Perda e resiliência são os sentimentos dominantes neste novo romance de Julián Fuks, que regressa à personagem de Sebastián – o centro desse grande romance intitulado A Resistência – para tentar responder a uma questão: “todo homem é a ruína de um homem?“. Com Fuks mergulhamos num país à beira do colapso, acompanhando uma tragédia familiar onde, a um penoso período de luto, descobrimos o fio que nos guia, por entre as ruínas e escombros de um hotel caído em desgraça e habitado por sem-abrigos, a uma necessária ocupação. Uma literatura que foge, como se lê a certa altura, de jogos cansativos, vaidades e engodos pueris, fundindo magistralmente a vida de carne e osso com o lado não palpável da ficção, num convite ao levantamento contra todo o tipo de opressão. Literatura que permanece para lá qualquer ocupação e que mostra que Julián Fuks é, na actualidade, um dos grandes escritores do país irmão.
“Cosmos – Mundos Possíveis” | Ann Druyan
Editora: Gradiva
Um dos grandes livros publicados em Portugal no ano de 2020, que prossegue a tremenda Odisseia que Carl Sagan e Ann Druyan começaram juntos – e que Ann retoma agora numa viagem fascinante pelo Cosmos, percorrendo 14 mil milhões de anos de evolução cósmica e dando a conhecer alguns dos recantos mais íntimos da natureza, bem como nomes mais ou menos obscuros que fizeram a história da ciência, sejam eles Galileu e Darwin ou, menos inscritos nos manuais, a astrónoma Caroline Herschel, o botânico Nikolai Vavilov ou o engenheiro Yuri Kondratyuk. Tudo acompanhado de fotografias e ilustrações que fazem deste Cosmos um manual para um novo mundo, onde a ciência e a tecnologia possam ser uma tábua de salvação e abrir as cortinas da escuridão do Cosmos.
“Nada a Temer” | Julian Barnes
Editora: Quetzal
Procuram um livro sobre a inevitabilidade da morte, que vos faça sair de cena com uma certa sensação de missão cumprida? Pois bem, “Nada a Temer” é bem capaz de ser esse livro, um livro de memórias e meditações da autoria de Julian Barnes, ateu aos vinte e agnóstico aos cinquenta e sessenta, que versa sobre aquela que será a nossa única certeza: o nosso desaparecimento. Nesta viagem tremenda pela curta e pessoal existência terrena, Barnes esgrime argumentos com o irmão filósofo, fala do medo da morte, discute Deus e celebra a arte, sempre através da sua história pessoal e de personagens reais que, ao longo dos séculos, não enfiaram a cabeça na areia e confrontaram a morte de olhos abertos – como Jules Renard, que atravessa o livro de uma ponta à outra. Belo e extremamente divertido, “Nada a Temer” não oferece grande consolação, mas serve-nos o destino final de forma espirituosa.
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