“Vardo – Depois da Tempestade” (Topseller, 2020) é um surpreendente romance escrito pela dramaturga e poetisa britânica Kiran Millwood Hargrave, inspirado no movimento da “Caça às Bruxas” da Idade Moderna. Um dos períodos mais sanguinários da História, que varreu o Centro e o Norte da Europa numa perseguição religiosa sobretudo a mulheres, alegadamente detentoras de poderes sobrenaturais.
Este movimento, iniciado pela igreja Católica Romana no século XV e que atingiu o seu apogeu nos seculos XVI a XVIII – principalmente na Escandinávia e Escócia mas, também, noutros países da Europa (Espanha e Portugal incluídos) -, torturou e matou milhares de pessoas inocentes nas fogueiras da Inquisição. Muitas delas foram julgadas e mortas por denúncias e alegações falsas de prática de bruxaria, com o fim de uma apropriação ilícita de bens alheios ou como forma de vingança.
Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, a expressão «caça às bruxas» significa «perseguição sistemática de um governo ou de um partido aos seus adversários políticos». A sua origem remonta ao período em que era corrente perseguir pessoas por motivos religiosos e políticos, com o pretexto de praticarem bruxaria e de terem feito um pacto com forças demoníacas.
O livro mais expressivo sobre esta tremenda perseguição, “Martelo das Feiticeiras”, foi lançado em 1487 pelos inquisidores Heinrich Kraemer e James Sprenger, livro nunca reconhecido pela Igreja e posteriormente inserido no Index Librorum Prohibitorum da igreja Católica, tendo os autores sido excomungados por o terem continuado a publicar.
A narrativa de Kiran Millwood Hargrave situa-se no século XVII, em Vardo, Noruega onde ocorreu uma “caça às bruxas”, que a autora recria num romance que denuncia os desmandos (religiosos e políticos) da época mostrando grande admiração pela força no feminino.
A escrita é intensa e crua, nela ecoando as grandes privações de uma comunidade muito pobre. A acção (romanesca) decorre por volta de 1617, quando uma tempestade súbita em alto mar faz desaparecer 40 dos 53 homens existentes em Vardo, praticamente todos os habitantes masculinos da pequena ilha. Hargrave conta como é que as mulheres, sozinhas com filhos pequenos num clima inclemente e sem recursos, se uniram para realizar o trabalho duro ( sobretudo a pesca e o amanho da terra) que pertencia aos homens da aldeia, isto independentemente das suas diferenças: algumas provinham de uma comunidade sami considerada, pelo então poder da Dinamarca/ Noruega, como a “população bárbara dos lapões”.
Esta força feminina de sobrevivência veio desencadear um conjunto de rumores e falsas percepções ao Rei Cristiano IV, “cada vez mais ansioso por deixar a sua marca no mundo”, e que aí entende colocar (aconselhado pelo lensmann John Cunningham, homem da sua confiança) um comissário, o autoritário/temente a Deus/escocês- Absalom Cornet para, juntamente com “um pequeno grupo de homens capazes e tementes a Deus”, acabar com a alegada prática de magias pelas mulheres da aldeia. A acção desenrola-se de forma abrupta e severa, numa revoltante história que mostra a brutalidade e indiferença com que os homens podiam silenciar as mulheres, transportando o leitor para um mundo onde o frio cortante do Inverno parece gelar e embrutecer os corações, com atrocidades “legitimadas” por julgamentos-fantoche.
Maren, uma jovem de Vardo, é a protagonista deste livro, e a ela se une Ursula – ou Ursa -, uma jovem norueguesa apressadamente casada pelo pai por motivos financeiros, que tem um papel verdadeiramente decisivo no evoluir da trama e na vida emocional e pessoal de Maren. A par das brutais sevícias, infligidas em nome de Deus, acompanhamos uma história de amor e da consumação do desejo, com um desfecho surpreendente para estas duas mulheres e o enigma que elas encerram.
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