João Céu e Silva, jornalista do Diário de Notícias, dedicado à literatura e à investigação histórica, desperta a atenção e os sentidos do leitor ao burilar um intricado enredo, meio relato histórico, meio thriller, com o dom suplementar de fornecer informação relevante sobre a vida, a obra e o pensamento do grande Fernando Pessoa.
A leitura de “A Segunda Vida de Fernando Pessoa” (Guerra & Paz, 2020) corresponde à ingestão de um superalimento pois tem conteúdo, revela identidade e integra aquele suplemento fundamental nos dias de hoje: a surpresa. Se não lermos a sinopse do livro e nos deixarmos conduzir pela narrativa capítulo a capítulo, ficamos com a firme sensação de que, efectivamente, em pleno Séc. XXI, é possível que Fernando Pessoa, encarnando o seu heterónimo Vicente Guedes, tenha voltado para revelar novos textos e lutar por um reconhecimento ainda mais alargado.
Convencimentos ou sensações à parte, João Céu e Silva constrói um enredo no qual há a experiência surreal de um professor, atraído por um homem misterioso e entendido em estudos pessoanos, que o contrata para uma investigação, acabando por o envolver em experiências esotéricas, moldando-o física e espiritualmente para encarnar Vicente Guedes e continuar a obra do poeta. Neste processo de formatação do professor é-lhe cultivado o pensamento e a obra de autores como W. B. Yeats, Ian Fleming e Somerset Maugham, a activação de experiências amorosas e o cruzamento, ainda que breve, com personagens como Proust, Joyce, Hemingway e Torga.
Publicado pela primeira vez no Diário de Notícias, em plena pandemia, sob a forma de folhetim, este texto de João Céu e Silva tem o mérito de reatar a relação do leitor com grande parte dos aspectos essenciais em Pessoa: o poeta e a sua descendência heterónima, os seus interesses pelo misticismo, o indivíduo, o seu magnetismo e as suas particularidades psiquiátricas.
No final, fica em evidência a complexidade e a eternidade de Fernando Pessoa pois, como o próprio chega a afirmar no livro, ainda que por interposta pessoa e em tempos improváveis, “a eternidade das palavras que têm por missão preservar não está, como pensam, numa arca meio cheia, mas na parte meio vazia da qual só eu tenho a chave”.
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