“Porque é que a escrita nos faz procurar o escritor? Porque é que não o deixamos em paz? Porque é que os livros não bastam? Flaubert queria que fosse assim: poucos escritores acreditaram mais na objectividade do texto escrito e na insignificância da personalidade do escritor; mesmo assim desobedecemos e continuamos.”
A frase é de Julian Barnes no lançamento do “O Papagaio de Flaubert” (Quetzal, 2019 – reedição), ele próprio um desobediente assumido no que ao escritor francês diz respeito e que, através da invenção de Geoffrey Braithwaite, um médico reformado e viúvo, atravessa o canal da Mancha rumo a Rouen, a terra natal de Gustave Flaubert, tudo para ver o papagaio embalsamado que terá servido de modelo a Flaubert durante a escrita de “Un Coeur Simple” – papagaio que terá permanecido na sua secretária durante três semanas, até Flaubert ter começado a sentir uma certa irritacão.
Uma vez mais e para regozijo do leitor, Julian Barnes alarga página a página o horizonte deste projecto, construindo uma biografia desalinhada do autor de Madame Bovary, onde cabe também uma dissertação interrogativa sobre o amor e o sentido da vida que faz dos livros o lugar onde habita a vida verdadeira – aquela que pode ser interrogada pelo leitor.
Neste ensaio literário, que por vezes parece ter sido pelos Monty Python num dia de verdadeira inspiração, Julian Barnes saca de todos os seus truque literários, entre coincidências e (sobretudo) ironias: há listas de cães, entre reais e figurados; curiosidades como o facto de, em Salammbô, os tradutores cartagineses terem papagaios tatuados no peito; uma crítica afiada aos críticos; uma discussão acesa sobre a cor real dos olhos de Madame Bovary, que parecem mudar consoante a previsão meteorológica; uma proposta de lista para temas proibidos na literatura; outra lista sobre os escritos apócrifos e as vidas não-vividas; ainda outra lista com os muitos crimes cometidos por Flaubert – como odiar a humanidade, odiar a democracia ou não acreditar no progresso; ou um dicionário de ideias feitas, com entradas como travestismo, Gouncourts, ironia ou EUA.
Amor e morte, cães e ursos, absurdo e beleza, caminhos de ferro e caminhos cruzados, papagaios e papagaios, numa falsa biografia de Gustave Flaubert onde este, representado pelo advogado Julian Barnes, é assim defendido perante o Meretíssimo: “Flaubert ensina-nos a olhar para a verdade e a não temer as suas consequências; ensina-nos, como Montaigne, a dormir na almofada da dúvida; ensina-nos a dissecar as partes constituintes da realidade e a observar que a natureza é sempre uma mistura de géneros; ensina-nos o uso mais exacto da língua; ensina-nos a não nos aproximarmos de um livro em busca de pílulas morais ou sociais; a literatura não é uma farmacopeia; ensina a superioridade da Verdade, da Beleza, do Sentimento e do Estilo. E, se estudarmos a sua vida privada, ensina a coragem, o estoicismo, a amizade; a importância da inteligência, do ceticismo e da imaginação; a palermice do patriotismo barato; a virtude de ser capaz de ficar sozinho no quarto; o ódio à hipocrisia; a desconfiança nas teorias; a necessidade de falar com simplicidade”. Bravo, Monsieur Barnes.
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