O título original de “Um Castelo em Ipanema” (Porto Editora, 2020), o segundo romance da brasileira Martha Batalha, foi, segundo a ficha técnica, “Nunca Houve um Castelo”. Esta alteração é apenas um pormenor, mas revela um dos temas subjacentes à obra: a dificuldade na construção de uma memória colectiva, graças à ausência de consenso nos olhares sobre o passado.
A história, apesar de começar no Brasil de 1968, tem realmente o seu início em 1899, na Suécia, quando o macambúzio Johan Jansson, membro de uma família “repleta de homens que desistiam da vida antes que a vida desistisse deles”, encontra uma razão para viver ao apaixonar-se pela peculiar Brigitta. Por ela, troca a carreira num ministério sueco pelo cargo de cônsul no Rio de Janeiro e manda construir uma monumental casa junto à praia de Ipanema. A construção foi uma das dez primeiras habitações da zona e ficou conhecida como “o castelo”, devido à mistura de inspirações mouriscas, góticas, barrocas e renascentistas. Trata-se do ponto de partida de uma saga familiar que atravessará décadas e gerações, dando vidas fictícias a algumas personagens verídicas.
Johan e Brigitta têm três filhos, que seguem caminhos diferentes. Só Nils, o mais novo, que vê o seu nome alterado para Nilson, permanece, casando e gerando descendência que também acompanhamos. Paralelamente à história da família alargada, decorre a história de um país: a ditadura militar e os seus abusos, os jovens idealistas que sobrevivem à prisão política e se tornam gente respeitável, o movimento feminista, as mudanças nos meios de comunicação de massas, a violência que as classes altas se esforçam por ignorar quando não as afecta e a luta pela ascensão social, onde não faltam migrantes portugueses.
A teia que une as várias figuras acaba por se centrar em Estela, a nora de Nilson, que é talvez a personagem que mais evolui ao longo do livro. A criança que ela foi desaparece no colégio interno que os pais portugueses se sacrificam para pagar, mas a jovem socialmente correcta em que se transforma submerge no seu tempo, até ressurgir, mais uma vez, como alguém bastante diferente.
Pouco a pouco, o castelo resplandecente, testemunha de tempestades, bailes, infâncias idílicas e primeiros amores, degrada-se e é vendido. Nas memórias dos vivos, funde-se realidade e fantasia, até que, um dia, a própria existência do edifício será debatida, com alguém a defender que “ali nunca houve um castelo”.
Podemos especular se o castelo servirá de metáfora para aquilo que o Brasil poderia ser. O que é inegável nesta obra é a vivacidade da escrita, que mantém permanentemente acesa a curiosidade dos leitores quanto ao destino das personagens. A autora é mestre no uso da ironia, mas o seu sentido de humor nunca se torna cruel, sendo sempre capaz de despertar simpatia por aqueles que sofrem quando a vida muda depressa e o futuro sonhado não é alcançado.
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