Ler “A Servidão Humana” (Asa, 2016 – reedição) é ler sobre o sentido da vida. Assente na mais profunda das solidões por que cada ser humano passa no seu caminho de auto-descoberta e do seu lugar no mundo, a história de Philip é universal.
Lançado em 1915, depois de vários anos de trabalho árduo, “A Servidão Humana” é o resultado de uma reflexão profunda de Somerset Maugham sobre a existência. Com semelhantes evidentes entre o perfil familiar do autor e do protagonista, na medida em que são ambos órfãos e entregues a familiares distantes, esta história não é mais do que a análise da vida pela filosofia. Ou o contrário. A procura da identidade, desde tenra idade, por parte de Philip, marca o tom silencioso daquilo que é a formação do indivíduo: a procura dos seus sonhos (e o caminho para os realizar), o entendimento do terceiro, a luta contra a adversidade, a queda na realidade.
Comecemos pela religião. Adoptado por familiares que vivem em torno de Deus, porque para si a vida não faz sentido de outra forma (lembremo-nos de que estamos no início do século XX), Philip luta durante anos para entender aquela que é a sua verdade. Por um lado, cresce a acreditar que a sua vida só faz sentido se seguir os passos do seu tio sacerdote, com quem vive. Pretende ser ordenado e viver de acordo com as palavras do Senhor, pelo que o seu futuro lhe augura segurança e estabilidade. Por outro, à medida que o tempo passa e que a sua voz se começa a tornar mais evidente, fruto do seu crescimento intelectual e emocional, Philip duvida sobre a existência de algo maior. Esta guerra interior, personalizada por vozes distintas que habitam o coração e o intelecto do protagonista, leva-o a viver uma crise existencial sobre o que é o destino e sobre a possibilidade que a vida lhe dá para escolher o seu caminho. Talvez seja a história mais velha da humanidade. Roger Martin du Gard conta-a de forma exemplar em “O Drama de João Barois”, publicado em 1913.
Esta é apenas uma das inúmeras facetas de Philip, o que retrata a forma exímia do autor para a criação de personagens complexas. A construção da personalidade do protagonista é a criação de uma consciência e de um ser (literário) que carece de vontades, sonhos, medos, frustrações, fraquezas – e muito mais. Consideremos os pormenores e exigências enumerados por David Lodge em “A Consciência e o Romance” (2002), no qual são apresentadas e estudadas técnicas de autores como Charles Dickens, Martin Amis ou John Updike para a criação de consciência em personagens. Somerset Maugham cria uma pessoa ao longo da história da sua vida.
Mas, o que define Philip? Tudo. A sua experiência de vida torna-o quem é. Desde a infância, momento crucial para a formação de personalidade, em que Philip perde os pais e é atirado para o desconhecido, ao sofrimento por que passa por sofrer de uma deformidade física, às pessoas com que se cruza, aos sonhos que pretende perseguir. E o que é extraordinário é que as mudanças na personagem acontecem gradualmente. Não precisamos de explicações, as mudanças simplesmente estão lá.
O amor, por exemplo, é um sentimento dúbio para Philip. Se é o melhor do mundo, por que lhe faz tanto mal? Como é possível que se torne escravo de uma mulher sem formação, desligada emocionalmente, que o maltrata e que está tão abaixo da sua condição social – algo de grande importância para o protagonista? A sua boa vontade e a sua esperança no melhor das pessoas leva-o a estados de profundo sofrimento, durante os quais pondera o suicídio (que pode ser encarado como uma das formas mais românticas de resolver o amor não correspondido em algumas das grandes obras clássicas). Por que está, então, tão ligado a Mildred? Ela parece-lhe desligada, demasiado determinada, obstinada. Tudo aquilo que ele não sente ser. Como jovem adulto, ainda a procurar o seu Eu, Philip entrega a sua alma a uma mulher que é o seu oposto. Ele não a compreende, mas intriga-o a postura de Mildred perante a vida. Talvez porque ele ainda não teria encontrado, nessa fase, a sua própria voz? O tempo passa e ela permanece, de forma mais ou menos próxima, junto dele, mas a reacção da leitura destas passagens é um mero: Porquê?
O mesmo se passa com alguns dos amigos de Philip. Alguns deles, amigos de circunstância, são idolatrados por Philip pelas suas opiniões definidas, pela certeza de resposta a dúvidas existenciais, pela aceitação de que a vida por ser vivida na miséria desde que se seja feliz – sendo que a felicidade de um não é a de outro. E o leitor compreende isto. Só com o passar do tempo, mais uma vez, é que é possível que a personagem compreenda que tipo de relacionamentos desequilibrados eram estes. Como fui capaz de o admirar? À medida que Philip cresce e a vida acontece, ele continua finalmente a encontrar o seu lugar no mundo e a aceitar a sua forma de vida como a possível. Ser adulto traz muito mais preocupações do que as que era possível prever e Philip começa a encarar o seu crescimento com muito mais clareza e realismo: o tipo de relação tóxica com Mildred, por exemplo, ou mesmo a aceitação de que há amizades que ficam melhor no passado. Não, obrigado, responde Philip a um amigo antigo que encontra na rua e que o convida para irem tomar café.
A procura pela sua vocação, a humilhação ditada pelas circunstâncias, a sensibilidade na descrição das suas dores, a empatia para com terceiros e a candura de ser fazem acreditar que Philip existe. Sabendo que há muito de autobiográfico do autor nesta obra, só nos resta esperar por outros momentos para que se possa reler esta história maravilhosa para se encontrarem ainda mais pormenores.
2 Commentários
Estou louco para começar essa leitura. Realmente esse livro é incrível, e a ótima resenha ressaltou ainda mais o interesse pela obra.
Próxima leitura do Appia, CLUBE DE LEITURA DE PORTO ALEGRE!!!