Foi com Sandman que Neil Gaiman inscreveu o seu nome no panteão dos grandes escritores, numa obra que inclui romances, novelas gráficas, contos e filmes para todas as idades – que já lhe valeram os prémios Newbury, Carnegie, Hugo, Nebula, World Fantasy e Will Eisner.
Outra das suas obras maiores dá pelo nome de Deuses Americanos que, depois de ter permanecido durante largos anos confinado às páginas do seu romance, foi recentemente transformada numa série televisiva – já com duas temporadas – e, também, numa bem desenhada novela gráfica, que está a ser publicada em Portugal com o selo da editora Saída de Emergência.
Neste segundo volume, intitulado “M. Ainsel” (Saída de Emergência, 2020), Shadow e Wednesday deixam a Casa na Rocha e continuam a sua viagem pela América através de estradas secundárias, fugindo aos seus perseguidores, conhecendo novos deuses e preparando-se, da melhor forma, para uma guerra em contagem decrescente.
Num passado que agora parece nem ter sequer existido, Shadow conduziu o carro de fuga num assalto a um banco de uma cidade pequena. Os dois colegas passaram-lhe a perna e dividiram o saque entre si, deixando Shadow pendurado. Num acto de vingança, Shadow acaba por quase os matar, sendo condenado a uma pena de prisão de 6 anos – da qual cumpre três. Dois dias antes de sair da prisão, comunicam-lhe que a sua mulher morreu, sendo “salvo” desta precoce derrota existencial pelo estranho Sr. Wednesday, que lhe oferece um trabalho de guarda-costas que o lança de cabeça num mundo onde o mito e o real caminham de mãos dadas, habitado por fantasmas e escondendo uma guerra iminente entre deuses.
No tempo presente, e de forma a arrefecer a voracidade dos seus perseguidores, Shadow refugia-se em Lakeside sob o falso nome de Mike Ainsel, numa casa paga por Wednesday que lhe deixa, também, uma boa maquia para não passar por dificuldades. Os sonhos, esses, continuam a não o tratar muito bem. Para além de ser visitado pela mulher, cujos beijos sabem a cigarros e bílis, a primeira noite em Lakeside não é animadora: sonha com uma vida inteira na escuridão, rodeado por imundície. Shadow anda a tentar conseguir ressuscitar Laura, numa cerimónia que poderá estar ligada à descoberta dos pássaros-trovão.
Shadow rapidamente se enturma com a população local, sobretudo com a vizinha Marguerite Olsen, cujo filho mais velho desapareceu – suspeita-se de que terá sido raptado pelo pai ou fugido com ele. Enquanto isso, trata de ajudar o Xerife a procurar uma rapariga chamada Alison, que conheceu no autocarro a caminho de Lakeside e que está também desaparecida. Sendo novo na cidade, e apesar do ar pacato, Shadow é um dos maiores suspeitos.
Quanto a Wednesday, parece estar a viver uma crise de identidade e de falta de reconhecimento: “Não me sacrificam carneiros ou bois. Não me enviam as almas dos assassinos e dos escravos, pendurados na forca e bicados pelos escravos. Criaram-me. E esqueceram-me. Agora, tiro-lhes alguma coisa. Não é justo?”.
Ao mesmo tempo que vamos acompanhando esta bizarra road trip pela América, recuamos na linha temporal por diversas vezes, quase sempre para estacionar em momentos temporais feitos de tortura, dominação e espiritualidade, seja para uma toma de cogumelos com as tribos do corvo e da raposa, cerca de 14000 anos a.C., ou para pintar um retrato da escravatura e da independência do Haiti em 1804.
Uma fantástica adaptação a novela gráfica, que conta com o argumento adaptado de P. Craig Russell – que já fez coisas tão incríveis e inesperadas como adaptar as óperas de Mozart (A Flauta Mágica), Strauss (Salomé) e Wagner (O Anel dos Nibelungos), ou os Contos de Fadas de Oscar Wilde, numa adaptação publicada em cinco volumes – e os desenhos de Scott Hampton – que, além de ter ilustrado livros de alguns dos melhores autores de fantasia como Gaiman, Robert E. Howard (Pigeons From Hell), Clive Barker (Tapping the Vein) ou Archie Goodwin (Batman: Night Cries), viu o seu trabalho Silverheels ser considerado, em 1983, o primeiro título de banda desenhada pintado com continuidade.
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