São oito os cadernos quadriculados escritos por Etty Hillesum, entre 1941 e 1943, cuja compilação tem o título de “Diário” (Assírio & Alvim, 2020). A rapariga judia de Amesterdão deixou-nos um dos testemunhos mais importantes na literatura do século XX. “Dentro de mim há um poço muito fundo. E lá dentro está Deus. Às vezes consigo lá chegar. Mas acontece mais frequentemente haver pedras e cascalho no poço, e aí Deus está soterrado. Então é preciso desenterrá-lo”. Por que motivo nos tocam tão profundamente as palavras de Hillesum? Penso que se deve ao facto de serem o testemunho de uma vida sem guião. Nas palavras deixadas por Hillesum apercebemo-nos constantemente da sua procura genuína por Deus e pelo amor, como se ver (com olhos de ver) fosse uma responsabilidade do ser humano. Os cadernos escritos a partir dos vinte e sete anos da autora — entretanto assassinada no campo de concentração de Auschwitz, antes de completar os trinta anos — são um retiro espiritual para o leitor.
A ideia de começar a escrever os cadernos foi-lhe sugerida por Julius Spier, referido como S. no Diário. S. é uma figura importantíssima no conjunto dos textos, nomeadamente nos primeiros cadernos, onde a menção é constante. “Quando alguém me impressiona, consigo passar dias e noites seguidas atolada em fantasias eróticas, creio que até agora não me apercebi bem da quantidade de energia que isso me custa; e no caso de chegar a haver contacto a sério, a desilusão é enorme. A realidade não se ajusta à minha fantasia porque ela é demasiado desvairada”. Etty conta também que quando conheceu Spier estava num estado solitário e frágil. S. representa uma espécie de guia espiritual que lhe ia propondo uma terapêutica para, no fundo, se encontrar consigo própria. “Ele ensinou-me a pronunciar com naturalidade o nome de Deus”. S., também judeu, após ter passado por uma série de actividades profissionais, dedicou-se à psicoquirologia, uma diagnose psicológica feita pela leitura da morfologia das mãos. Trabalho que aplicará também em Etty. Além disso, S. é quem lhe recomenda alguns dos livros mais impactantes da sua vida, como os escritos de Santo Agostinho e o Novo Testamento.
Não podemos falar de Etty sem mencionar Anne Frank, outra rapariga judia, bastaste mais nova, mas que também escrevia o seu diário em 1942, em Amesterdão. Ambas a viver um período negro, registando-o e, de forma arrepiante, tentando manter intacta uma certa luz no coração. Ambas, de modos diferentes, procurando fazer um caminho alternativo através da literatura – a que Etty chama “a minha segunda pátria”.
Hillesum considera alguns autores como vitais à sobrevivência do seu espírito — Hegel, Dostoiévski, Tolstói —, embora, quando decide partir para o Campo de Concentração de Westerbork (como voluntária num hospital improvisado para judeus), leve apenas consigo a Bíblia e dois livros de Rilke.
Etty mostra em todo o Diário uma maturidade e noção excepcionais. Por exemplo, quando afirma que a vida não tem fórmulas. “Tentas capturar a vida em algumas fórmulas, mas tal não é possível, a vida tem infinitas nuances e não se deixa apanhar nem simplificar”. A tal vida sem guião. Talvez por isso revele também um desejo de simplificação. “Ó Deus, dá-me de manhãzinha menos pensamentos e mais água fria e ginástica”.
Nas páginas do Diário é possível ver uma dicotomia entre pregos e flores. As suas palavras deixam esta marca no leitor. A natureza próxima do sublime que reúne horror e beleza. Um desejo absoluto por nos encontrarmos connosco e com Deus; só assim será possível o encontro com os outros. “Uma pessoa deve viver consigo própria como se vivesse com uma multidão inteira. (…) Uma pessoa deve aprender a perdoar os seus próprios defeitos, se é que quer perdoar os outros”. Palavras como pregos e flores num período onde a banalidade do mal nunca foi tão explícita. E ainda assim um desejo claro, vindo da excepcionalidade do bem: “Gostaria de ser um bálsamo para muitas feridas”.
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