Viviam-se os tempos do analógico, de ir subindo uma ou duas escadas de cada vez, de colar cartazes em postes de electricidade a anunciar o próximo concerto que, com sorte, teria metade da casa preenchida. Foi ainda neste cenário que cresceram os Nirvana, banda liderada por um ícone chamado Kurt Cobain, que viria a percorrer uma viagem sombria habitada pelo génio absoluto, uma dor imensa e uma tragédia que poderia, tal a dimensão, ser chamada de grega. Uma banda que marcou o fim da música como a conhecíamos, e que acabou por ser engolida por uma indústria voraz, a perseguição dos media ou uma explosão tecnológica, que permitiu a partilha imediata mas retirou o sabor do anonimato, da lenta descoberta e da fruição sem prazo de validade imposta pelo que é novo.
Durante quatro anos, Charles R. Cross, em tempos editor do jornal de música The Rocket, o primeiro a acompanhar a efervescência musical do Noroeste da América – e também o primeiro a publicar uma reportagem de capa com os Nirvana -, autor de nove livros e com peças publicadas em referências como a Rolling Stone, a Esquire ou a Guitar World, fez pesquisa, conduziu mais de quatrocentas entrevistas e teve acesso ao espólio de Kurt Cobain. O resultado deu pelo nome de “Heavier Than Heaven – A Biography of Kurt Cobain”, biografia publicada originalmente no ano de 2001, e que chegou às livrarias portuguesas no ano passado com o selo e a tradução da Pim! edições.
“Mais Pesado do que o Céu: A Biografia Definitiva de Kurt Cobain” (PIM! edições, 2019) mistura, de forma soberba, a paixão de um fã conhecedor com o olhar crítico e apurado de um jornalista musical, numa história que progride a um ritmo capaz de envergonhar o franchising da Velocidade Furiosa. Um livro que mostra devoção mas que é, também, implacável, resultando numa biografia emocional que se lê com a voracidade de um teenager.
Somos apresentados, logo à entrada, à árvore familiar de Kurt. Uma árvore que mostrou, em muitos dos seus ramos, uma propensão para o suicídio. Um acto irreparável que esteve sempre presente – e que foi por várias vezes tentado – durante o curto percurso de Cobain, um tipo que desenvolveu “um padrão repetitivo de intimidade, conflito e desterro”, forçando o conflito de modo a mitigar o sentimento de abandono.
Suicídio que acabou por surgir de forma algo premeditada e com ar de encenação. Uma forma de alcançar a imortalidade de alguém que, em tempos, terá dito querer fazer um disco mais impactante que os U2 ou os REM – pois bem, conseguiu-o -, e que viveu sempre a viajar entre opostos, como notou, a certa altura, Jon Pareles, que o entrevistou para o New York Times: “É cauteloso e imprudente, sincero e sarcástico, melindroso e insensível, tem consciência da sua popularidade e, ao mesmo tempo, tenta ignorá-la”.
A escrita de Charles Cross é uma canção perfeita, navegando entre o estatuto de lenda e a absoluta fragilidade de Kurt Cobain, numa viagem empolgante pelos seus primeiros anos, a formação dos Nirvana, a vida numa cidade de fim do mundo, a relação com as editoras musicais, os primeiros concertos com meia dúzia de malucos, o amor tresloucado com Courtney Love, o fascínio por coisas repugnantes, o problema de estômago que o consumiu, a genialidade da composição de quem dizia que as suas letras eram “coisas fixes para serem cantadas” – e que escreveu num apartamento a cheirar a urina -, a relação com a banda que foi um verdadeiro tumulto, as digressões que fez a muito custo.
Um retrato notável, comovente, revelador e muito bem documentado de um dos maiores ícones da história do rock, e que serve de porta de entrada ao estranho e inquietante mundo de Kurt Cobain. O teen spirit está todo aqui.
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