Foi roqueiro alienado, de guitarra distorcida em punho, numa das cidades mais isoladas do planeta – Perth, na Austrália. Depois ganhou mundo e tornou-se um reservado xamã psicadélico. Hoje em dia veste a pele de um meticuloso mago de estúdio, procurado por vedetas como Lady Gaga e Rihanna, e por estrelas do rap como Travis Scott e ASAP Rocky. O percurso de Kevin Parker, o senhor Tame Impala, cresceu exponencialmente desde a estreia, em 2010, e o caminho foi serpenteante, mas sempre a subir em direcção ao mainstream.
Os cinco anos desde a edição de “Currents”, de 2015, pareceram uma eternidade. Havia muita expectativa em perceber se o som da banda continuaria ligado aos sintetizadores dos anos 80, fugindo aos incríveis solos de guitarra que rugiam nos primeiros discos. Chega agora “The Slow Rush”, quarto álbum de estúdio, que direcciona essa fuga para a estrada cintilante do electro-pop.
Encontramos Kevin Parker virado para a contemplação: o tema dominante é a passagem do tempo, uma certa nostalgia aliada a uma visão optimista do futuro. Numa altura em que muitos artistas estão concentrados nas desigualdades e nos desafios do mundo à sua volta, o músico trabalha em contraciclo e vira-se para dentro: “The Slow Rush” é uma viagem guiada pelas suas paisagens e preocupações interiores.
“One More Year” abre a porta com um coro de vozes distorcidas – Kevin refere-se a elas como “canto gregoriano robótico”. O ritmo é dançante, com um beat bem vincado a cheirar a Daft Punk. É um tema circular, viciante, cheio de pormenores e coloridos complexos.
O disco parece fruto do trabalho de um batalhão de músicos. No entanto, os 12 temas foram gravados, produzidos e misturados pelo próprio Parker, em Los Angeles e no seu estúdio na Austrália. “Para mim a produção faz parte do processo de escrita de canções”, diz. “Sou completamente incapaz de escrever uma canção sem pensar, ao mesmo tempo, em como será produzida”.
Será tarefa difícil identificar guitarras neste álbum: o som faz tangentes ao Disco Sound dos Bee Gees e aos teclados cristalinos dos Supertramp. Em “Borderline” há mesmo uma flauta new age manhosa, sem um pingo de vergonha. Reina o paladar agridoce do som dos seventies, filtrado pela mais recente tecnologia de estúdio.
“Breathe Deeper” é uma balada funk adornada pelo piano, que podia vir da paleta de Pharrell Williams; “Glimmer” é essencialmente um tema de house music, e “Is It True”, animado por um baixo super funky, foi feito para as pistas de dança, para não falar de “Lost In Yesterday”, um rebuçado pop que é talvez o momento mais inspirado de todo o álbum.
Há ainda a introspectiva “Posthumous Forgiveness”, onde Kevin procura fazer as pazes com a memória do pai já falecido. A primeira parte ostenta um baixo vigoroso, a fazer lembrar os tempos de “Innerspeaker”; segue-se um interlúdio com uma muralha de sintetizadores operáticos, uivando como sirenes; entra-se por fim numa onda mais amena, mais soul, a fechar a canção.
A mistura denota uma elegância a toda a prova, mostrando os dotes de produção do australiano, o que acontece ao longo de todo o disco, ainda que haja algumas fragilidades a assinalar: a prestação vocal é sempre muito semelhante, algo limitada, e o álbum tem alguns pontos mortos – veja-se a enfadonha “On Track”, por exemplo.
“The Slow Rush” é mais um prego no caixão da encarnação rock dos Tame Impala, por estes dias mais dados a sintetizadores luzidios do que a riffs de guitarra ferozes. O que não muda é a força das percussões, que continuam pesadas como balas de canhão.
É um disco fortemente imbuído da estética Tame Impala, da primeira à última nota. No entanto, depois de uma semana de convivência com o álbum, não podemos deixar de sentir que falta alguma chama nesta nova faceta de Kevin Parker. “The Slow Rush” é música para dançar mais com o cérebro do que com as ancas.
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