«Uma memória extraordinária», como afirma o Sunday Times, talvez seja a referência mais certeira para descrever “A Rapariga Esquecida” (Vogais, 2019), da autoria de Bart van Es. São incontáveis os livros que contam a história de sobreviventes do Holocausto, muitos na primeira pessoa. Quando se arrisca a contar as vivências de outrem, incorre-se na possibilidade de se perderem pormenores, de a história ser minorada, de a realidade ser incompleta. Neste livro, tal não aconteceu. O trabalho de investigação é primoroso, dado que não se limita a narrar com detalhe a vida de Lien, desde que é acolhida por uma família adoptiva. Bart van Es enquadra a história de Lien na sua própria história, e embrulha o passado e o presente numa única narrativa, resultando num relato na terceira pessoa envolvente, tocante e necessário.
Bart conta a história de Lien, centrada na Holanda profunda, utilizando sempre o presente como tempo verbal. Não há viagens ao passado e dúvidas sobre o desenvolvimento. Lien entra em casa do leitor e aí permanece até à terceira idade. Desde o início, acompanhamos a vida “dupla” desta mulher: intercalando capítulos para contar ora a infância de Lien na Holanda ocupada na Segunda Guerra Mundial, ora os seus encontros e a sua viagem pelo país no decorrer da sua investigação, o leitor está permanentemente acompanhado. E, com esta minuciosidade, Bart vai contando a história de Lien, a rapariga que foi afastada da família para que pudesse sobreviver, e que se afastou da família de acolhimento para que pudesse viver. “The Cut Out Girl” não é tanto a rapariga que foi esquecida, mas aquela com quem tiveram de cortar os laços, ainda que em prol do seu bem-estar. No fim, ela fica apenas consigo.
Mais do que contar a história de Lien, o autor faz um retrato daquelas que foram as famílias de acolhimento que, durante a guerra, arriscaram as suas próprias vidas para salvar outras. Caves escondidas, conversas secretas, envolvimento com a Resistência e buracos debaixo de árvores demonstram a realidade micro da Guerra. Enquanto aviões sobrevoavam o país, crateras se abriam no chão com explosões e o inimigo marchava nas ruas.
Estas famílias fizeram o possível para salvar tanto crianças como adultos e, dentro desta ansiedade permanente e crescente, a vida continuava quase normalmente. Para lá da fome que assolou o país, sobretudo nos últimos anos de guerra, mantinham-se as discussões familiares, a dificuldade no diálogo, as decisões sobre quem levanta a mesa, a rotina nocturna antes de irem dormir. São estes pormenores corriqueiros que tornam a história ainda mais real, à semelhança do que Miep Gies revela em “A Mulher que Escondeu Anne Frank”, ou do que a própria Anne Frank narrava nessa mesmíssima altura em Amesterdão, no seu diário. Anne Frank, rapariga que foi colega de escola de um amigo de Lien. O cruzamento de dados e a narração de visitas a museus da guerra para a investigação do livro entrelaçam-se na perfeição, para que este não seja apenas mais um livro sobre um testemunho, mas sim um complemento perfeito para enriquecer ainda mais a memória dos sobreviventes e daqueles que morreram.
“A Rapariga Esquecida” venceu o Prémio Costa em 2019 e, na cerimónia, autor e protagonista subiram ao palco. “Sempre disse que sem família não temos uma história, mas agora, graças ao Bart, eu tenho uma história e também uma espécie de família”. E é neste momento que Lien sai do livro e mostra ao mundo que ela é, de facto, uma sobrevivente. Agora, a sua história não morrerá.
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