“69 Love Songs is not remotely an album about love. It’s an album about love songs, which are very far away from anything to do with love.”
Stephen Merritt
Ao contrário do que se pode suspeitar pelo texto anterior desta série, que contava a história, real e vivida, do tema “Reno Dakota”, Stephen Merritt nunca acreditou que, para escrever de enfiada uma quantidade impensável de músicas de amor, seria preciso ao autor passar necessariamente pelo corredor de horrores de várias e diversas experiências românticas (graças a deus!). O projecto “69 Love Songs” não seria, afinal, um manifesto ontológico mas si antológico, ou seja, conceptual. Quase enciclopédico. O que interessava a Merritt não era o amor, mas o conceito da música de amor. E é por isso que, nos 69 temas deste grandioso exercício, encontramos trovas medievais e melodias folk, faixas pop ao jeito dos Beach Boys, trechos psicadélicos do género Grateful Dead, peças obsessivas-compulsivas que lembram Joy Division e toda uma panóplia de estilos e vocações que vão do A ao Z da esquizofrenia harmónica e da patologia lírica.
Na duração intransigente deste percurso estético, encontramos textos que procuram explorar os limites criativos da comicidade, tanto como da dramaticidade, inerentes ao amor passional. Trata-se, invariavelmente, de um trabalho de abstracção; formalista, satírico, impiedoso. Reparem no refrão de “A Chicken With Its Head Cut Off“:
But my heart’s running ’round like a chicken with its head cut off
All around the barnyard, falling in and out of love
The poor thing’s blind as a bat, getting up, falling down, getting up
Who’d fall in love with a chicken with its head cut off?
Ou no apelo aliterante e folclórico em “Absolutely Cukoo“:
Don’t fall in love with me yet
We only recently met
True, I’m in love with you, but
You might decide I’m a nut
Give me a week or two to
Go absolutely cuckoo
Ou ainda na perdição romântica, de tom bíblico, em “Book Of Love“:
The book of love is long and boring
and written very long ago
It’s full of flowers and heart-shaped boxes
and things we’re all too young to know
but I, I love it when you give me things
and you, you ought to give me wedding rings
Mas, talvez, o exemplo mais brilhante da abordagem conceptual a que Stephen Merritt submeteu os Magnetic Fields para a construção deste triplo albúm é o tema “I Don’t Believe in The Sun”. Aparentemente, trata-se de um poema que se inspira na prosaica depressão que sempre acomete o amante quando o objecto da sua paixão decide, desgraçadamente, abandonar o romance. Porém, na verdade, estamos perante algo muito mais ambicioso. Merritt utiliza a tragédia ligeira do desgosto de amor para uma revisão das leis da física, num exercício estilístico que é em exclusivo a substância do poema. E eis que somos chegados conclusivamente ao pressuposto formal de “69 Love Songs”: a paixão é, em si, desinteressante. A forma como a arte tira partido da paixão para ganhar poder terratransformador é que tem valor a sério. Até o sol passa de corpo celeste a acto de fé. Senão vejamos:
They say there’s a sun in the sky
But me, I can’t imagine why
There might have been one
Before you were gone
But now all I see is the night
So I don’t believe in the sun
How could it shine down on everyone
And never shine on me
How could there be
Such cruelty
The only sun I ever knew
Was the beautiful one that was you
Since you went away
It’s night time all day
And it’s usually raining, too
So I don’t believe in the sun
How could it shine down on everyone
And never shine on me
How could there be
Such cruelty
The only stars there really are
Were shining in your eyes
There is no sun except the one
That never shone on other guys
The moon to whom the poets croon
Has given up and died
Astronomy will have to be revised
I don’t believe in the sun
How could it shine down on everyone
And never shine on me
How could there be
Such cruelty
A astronomia tem que ser revista; nada mais, nada menos. Porque para Stephen Merritt é a arte, e não o amor, que é capaz de alterar a física e a metafísica do universo.
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