No dia em que o filme “Capitão Falcão” chega a mais de cinquenta salas de cinema do país, fazendo de Gonçalo Waddington o primeiro homem a vestir a pele – ou, neste caso, o fato – do primeiro super-herói português, o Deus Me Livro publica uma entrevista com o actor, encenador, realizador, dramaturgo, argumentista e produtor. Muito ficou por perguntar numa curta viagem que tenta esboçar o retrato de uma das mais inventivas, divertidas, intrigantes e desafiadoras personagens portuguesas. E que tem, em “Albertine, o Continente Celeste”, a sua estrela polar – a peça de Gonçalo Waddington, co-produzida pelo Teatro Nacional São João (Porto) e que este ano chegou ao papel através da colecção Palco, uma colaboração da editora Abysmo com o Teatro Municipal São Luiz (Lisboa). E Proust, pois claro.
Actor, encenador, realizador, dramaturgo, argumentista e produtor. Qual destas muitas peles que tens vestido te assenta melhor – ou, se preferires, em qual delas te sentes mais feliz?
A verdade é que a insatisfação – ou o desassossego – que me acompanha desde tenra idade me tem levado à procura de novas aventuras. Quando penso no meu trabalho como actor nestes últimos cinco ou seis anos, não deixo de sentir que a evolução positiva se deve precisamente à minha incursão por outros caminhos, tais como a escrita e a encenação. Sou feliz procurando, perdendo-me e debatendo-me com novas aventuras profissionais.
É muito provável que as pessoas, sobretudo as mais novas, te associem mais à vertente menos séria da representação, isto olhando apenas para “O Último a Sair” e “Odisseia”. Bastará, porém, dar uma vista de olhos na tua já aprumada biografia para perceber que carregas contigo um passado de representação ao mais alto nível. O que preferes arrancar ao público: risos ou lágrimas?
Acho que podemos falar de qualidade, ou de uma certa exigência, vá, nas lágrimas ou nos risos que pretendo arrancar. Procuro fugir a tudo o que for demasiado fácil, isto porque acho, ou melhor, tenho a certeza, de que é tão difícil fazer chorar como fazer rir dentro de um padrão de exigência que fui depurando ao longo do tempo. Sabemos o quão fácil é arrancar uma lágrima ou uma gargalhada: basta vermos os programas da tarde de todos os canais generalistas, em que o apresentador tem sempre uma laracha para deleite do público. Ou quando contam a história de uma invisual – sim, porque os apresentadores sabem que se não se deve dizer cega. Muito menos ceguinha! – que perdeu dois dos seus sete filhos e o público, sempre tão diligente, desfaz-se imediatamente em lágrimas. O mesmo se passa nos últimos blockbusters de comédia estreados nas nossas salas, em algumas peças de teatro, nas telenovelas e na maior parte das séries televisivas.
Como é assumir a grande responsabilidade de vestir a pele do Capitão Falcão, o primeiro super-herói português?
Não penso nisso. Tento fazer o melhor possível, dentro das minhas capacidades, para servir o realizador e o seu filme. Esta é a minha postura em todos os trabalhos, seja em teatro, cinema ou televisão. Talvez pense na questão da responsabilidade algum tempo depois de o filme estrear. Porque aí sim, com alguma distância posso reflectir sobre o que fiz mal, ou sobre aquilo que poderia ter melhorado. Muito poucas vezes penso no que fiz bem mas, o que fiz de mal, nunca me sai da cabeça.
Descreve-nos em poucas palavras a essência do Capitão Falcão.
Machista, misógino, racista, fascista, homofóbico, fudamentalista – enfim, um tipo desprezível.
Diz que o episódio piloto apresentado no Motelx irritou algumas pessoas, confirmas?
Irritou os machistas, os misóginos, os racistas, os fascistas, os homofóbicos e os fundamentalistas – não consideres esta resposta uma resposta preguiçosa, por favor. É mesmo a leitura que faço dessas reacções, embora tenham sido em pequena escala.
Achas que as pessoas têm perdido o sentido de humor, ou que há uma certa dificuldade em distinguir o real do imaginário? Parece que aconteceu isso a muito boa gente aquando da passagem de “O Último a Sair” pelos pequenos ecrãs.
Acho que há uma tendência, cada vez mais aguda, para a omnipresença mediática: gente que não se coíbe de emitir uma opinião sobre todo e qualquer assunto, de preferência quando sabem pouco – ou mesmo nada – sobre esse assunto. Daí que, aquando da estreia de O Último a Sair, muita gente que apenas viu cinco ou dez minutos de um episódio – ou, pior, ouviu uma breve descrição do que se passou num dos episódios – não se absteve de condenar a RTP por produzir um Big Brother dos Famosos.
De onde chega este teu fascínio e delírio com a física e a cosmologia tão vincados em “Albertine, o Continente Celeste”?
Sempre me fascinaram as questões da cosmologia, mas nunca tinha lido tanto e tão bem sobre o assunto como na pesquisa que fiz para esta peça. Isso deveu-se, sobretudo, à ajuda que tive do Prof. Dr. Pedro Gil Ferreira, Astrofísico e Investigador em Oxford, que me indicou alguns livros, artigos e publicações online, e ao Prof. Dr. Vincenzo Vitagliano, Investigador no CENTRA do IST, com quem conversei durante muitas horas e que, generosamente, respondeu a todas as minhas dúvidas. A vontade de aprofundar estes assuntos nasceu da análise à obra do Proust, Em Busca do Tempo Perdido. O Tempo tinha, forçosamente, de ser dissecado. E, se quisermos saber “o que é” o Tempo, vamos parar à astrofísica, à cosmologia e à física teórica. Se o Proust escrevesse Em busca do tempo perdido hoje, teria todo um ‘novo mundo’ sobre o que é o Tempo, não só do ponto de vista poético como também filosófico. Embora ele aborde de raspão temas como o cosmos, os astros e a biologia do ponto de vista darwiniano, surgiu todo um espectro de temas na astrofísica , na cosmologia e na mecânica quântica que lidam com o tempo. Como só concebo a abordagem do tema a partir de ‘hoje’, estas ferramentas científicas seriam o material do Marcel que eu imagino. O autor da personagem do narrador – e da personagem Albertine – utiliza esses temas como assuntos de soirée, propondo uma reflexão com o público.
Não receaste que o público se intimidasse com o primeiro e difícil acto e abandonasse a sala – ou, neste caso, pousasse o livro?
Em relação ao público, não. O actor Tiago Rodrigues era brilhante em toda a peça, tal como a Carla Maciel. Em relação aos leitores, não consigo sequer responder. Mas se pensarmos na obra do Proust, Em Busca do Tempo Perdido – como é óbvio, a minha peça não está sequer na mesma liga, não faço qualquer tipo de comparação, ser-me-ia impossível! –, quantas pessoas pararam logo a meio do primeiro volume? Quantas barbaridades foram escritas sobre essa obra – chato, maçador, name-dropper, pedante? O mesmo se poderá perguntar sobre as obras do Joyce, do Beckett, do Pynchon…
Leste os sete volumes do Em Busca do Tempo Perdido ou ficaste pela versão reduzida?
Um dos grandes problemas da lágrima fácil e do humor fácil é o “ficar pela rama”. Por exemplo, quando alguns humoristas da nossa praça querem fazer piadas com o Cinema Português, referem invariavelmente os filmes do Manuel de Oliveira, que são “parados”. Ou o filme Branca de Neve, do João César Monteiro, que era “todo a negro”. Nunca se deram ao trabalho de ver os filmes do Pedro Costa, do Miguel Gomes, do Hugo Vieira da Silva, do José Álvaro Morais, do João Salaviza e toda a obra dos já mencionados Manuel de Oliveira e João César Monteiro. O mesmo acontece com maus argumentistas, maus realizadores, maus escritores e maus encenadores. Acho que quem quer escrever a partir de uma obra ou debruçar-se sobre determinado assunto tem, dentro das suas capacidades, de dominar o assunto e/ou a obra. Não sei se existe uma versão reduzida da obra. Se existe, desconheço. Se usasse uma “versão reduzida” como ponto de partida para a escrita da peça, estaria escrito na sinopse: “… a partir da “versão reduzida” da obra Em Busca do Tempo Perdido”.
Como tentarias convencer um leitor a atirar-se a uma missão tão impossível quanto a de ler os sete volumes de uma assentada? Isso é coisa para demorar quantos anos?
Eu li a obra em menos de um ano. Pelo meio ainda li algumas obras de cosmologia e astrofísica. Mas é preciso dizer que a leitura destas obras era o meu trabalho. Além de ensaios e rodagens eu passava muitas horas por dia na biblioteca a ler. Porque, repito, esse era na altura o meu trabalho. Quem quiser ler a obra e não o fizer por “trabalho”, irá com certeza demorar muito mais. Irá ler menos horas por dia e, muito provavelmente, ler outros livros pelo meio.
No livro transmites a imagem de Proust como um tipo que foi grande naquilo que escreveu mas uma nódoa nas relações pessoais. Qualquer coisa como um arrogante intelectual. Era chato, o Proust?
Li a biografia Marcel Proust, A Life, do Edmund White, O Cânone Ocidental, do Harold Bloom e alguns artigos que me foram sugeridos. Mas a imagem que transmito do Proust é a minha interpretação do Marcel da obra Em Busca do Tempo Perdido. E na obra – na minha opinião – sim, ele é uma nódoa nas relações pessoais. Mas faz por isso, quer sofrer. Ele é muito competente a sofrer por amor mas um incompetente na “arte de amar”. É muito fácil apelidar alguém de “arrogante intelectual” quando não estamos à altura. E eu, o autor da peça, não estou à altura do Proust. Quando comecei a ler a obra ele aparenta ser um name-dropper – tantos nomes de pintores, poetas, escultores, compositores, filósofos, políticos -, é um pedante. Deveria ser impossível estar na mesma mesa com aquele homem. Ele iria falar e falar e falar e falar e nunca iria ouvir os outros. “Espera lá, Gonçalo, isso é o Charlus!”, descubro eu mais à frente na obra. No entanto, é referido em muitos livros e artigos que o “verdadeiro” Marcel Proust era um excelente ouvinte. Mas o Marcel que eu apresento é o Marcel que fala como Charlus, ou como Swann, porque ele é, de facto, todos eles. Ele viveu-os e escreveu-os. E é esse o meu Marcel, o Proust “Marcel-Charlus-Swann”.
A peça anda à volta dos conceitos de memória e de tempo, da essência e da origem. Tentaste escrever sobre a diferença ou confronto entre aquilo que se escreve e o que se recorda? Serão assim tão diferentes?
Não, não são diferentes, na minha opinião. Até porque, acho eu, o que imaginamos ou pensamos que estamos a imaginar, poderá ser apenas fruto de memórias que vêm à tona quando submergimos na escrita. E essas memórias poderão ser a fusão de várias memórias, o que faz com com que não tenhamos a certeza de termos sido nós a “viver” o episódio que emergiu, se não será, de facto, imaginação “pura”.
Albertine é uma verdadeira força da natureza – um continente -, que aponta a Proust o dedo por todos os seus fracassos, indecisões e mentiras. Sobretudo por este a ter morto no campo da literatura. É ela a alma da peça?
Ela é o “contraditório”. Ela é quem me permite questionar o que Proust escreveu sobre Albertine – e não do motorista Alfred Agostinelli, “ a sua paixão malograda”, usando as palavras de António Mega Ferreira. Porque não fazê-la renascer e confrontar o seu criador, usando as palavras que ele próprio escreveu? Se ela é a alma da peça? Talvez seja, sim.
Pedindo uma tua frase de empréstimo, porque é que nos lembramos do passado e não do futuro?
A frase não é minha, é, desde há muito, de todos os astrofísicos, físicos teóricos e cosmólogos. De acordo com o que eu li, a direcção da seta do tempo estará ligada ao aumento da entropia que está sempre a aumentar. Portanto, haverá uma direcção do tempo. O que torna impossível recordarmo-nos do futuro. Mas isto sou eu a escudar-me na pouca ciência que li – porque é sempre pouca. Para responder – melhor? – à pergunta cito uma passagem do Javier Marías, num artigo intitulado “Sete razões para não escrever romances e uma para escrevê-los”. Neste caso, cito a única razão para escrevê-los:
“PRIMEIRA E ÚLTIMA – Escrevê-los permite ao romancista viver boa parte de seu tempo instalado na ficção, seguramente o único lugar suportável, ou o que o é mais. Isso quer dizer que lhe permite viver no reino do que pôde ser e nunca foi, por isso mesmo no território do que ainda é possível, do que sempre estará por ser cumprido, do que ainda não está descartado por já ter acontecido ou porque se sabe que nunca ocorrerá. O romancista realista, ou que assim é chamado, aquele que ao escrever segue instalado e vivendo no território daquilo que é e acontece, é o que confundiu sua atividade com a do cronista, a do repórter ou a do documentarista. O romancista verdadeiro não reflete a realidade, mas sim a irrealidade, entendendo por esta não a inverossimilhança nem o fantástico, mas simplesmente o que poderia ter acontecido e não aconteceu, o contrário dos fatos, dos acontecimentos, dos dados e dos feitos, o contrário “do que acontece”. Aquilo que “só” é possível segue sendo possível, eternamente possível em qualquer época e em qualquer lugar, e por isso se pode ler ainda hoje “Dom Quixote” ou “Madame Bovary”, alguém pode viver uma temporada com eles dando-lhes crédito, ou seja, não considerando-os impossíveis nem por serem já ultrapassados, ou o que dá no mesmo, por consabidos. A Espanha de 1600 que conhecemos e que hoje conta para nós é a de Cervantes e não outra, a de um livro irreal sobre livros irreais e sobre um anacrônico cavaleiro andante saído deles, e não do que era ou foi a realidade: a assim chamada Espanha de 1600 não existe, ainda que é de se supor que tenha existido; assim como nada existe ou conta mais sobre a França de 1900 que aquela que Proust decidiu incluir em sua obra de ficção, a única que hoje conhecemos. Antes havia dito que a ficção é o lugar mais suportável. Assim é porque traz diversão e consolo aos que a frequentam, mas também por algo a mais, a saber: porque além de ser isso, ficção presente, é também o futuro possível da realidade. E ainda que nada tenha que ver com a imortalidade pessoal, isso quer dizer que para cada romancista há uma possibilidade –infinitesimal, mas uma possibilidade– de que o que ele escreva esteja configurando e ao mesmo tempo seja esse futuro que ele nunca verá.”
Na peça são atiradas constantemente frases para o público. Acreditas que o Teatro, ao contrário daquilo que é permitido ao cinema, deve manter o espectador em constante tensão?
No cinema – embora esta afirmação seja discutível – também é permitido atirar frases ao público. Mas, em relação à tensão, acho que devemos manter o espectador atento e “preso”, o que no Teatro é mais complicado do que no Cinema, devido às diferenças no campo da manipulação do som e da imagem. Mas tensão, só, não. O público deve sentir um arco emocional atravessar-se dentro de si. Arco esse que está no texto, nos actores e na encenação.
Pegando na deixa da peça que encenaste e escreveste com o Tiago Rodrigues, o que se leva desta vida?
As memórias. Espero não perder a memória. Espero não me esquecer de quem sempre gostei e do que fiz.
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