“O silêncio, a absoluta recusa em falar, em especial sobre os mortos, é no fundo um vazio que a vida algum dia preencherá com verdade”. Esta é a primeira frase de “Morrer na Primavera”, de Ralf Rothmann, no qual o autor alemão rememora no final da Segunda Guerra Mundial, tentando dar corpo e resgatar o que estava por trás da melancolia profunda que o seu pai havia trazido da Guerra, quase uma depressão, que fez com que a guerra estivesse todos os dias sentada à mesa de sua casa.
A II Guerra, tema inesgotável, foi o mote da conversa que teve lugar no Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos, onde Rothmann teve como entrevistadora Gabriela Fragoso, a tradutora de “Morrer na Primavera” (Sextante, 2019), que falou de parte da sua obra como “um panorama da vida quotidiana da Alemanha da II Guerra até à actualidade”.
Filho de pai mineiro e de mãe empregada de bar, Rothmann teve na infância um momento feliz mas decisivo à mudança que chegaria na idade adulta: “A infância, pelo menos até aos meus cinco anos, foi uma fonte de felicidade. Em criança cresci no meio de animais, não tinha de ir a um jardim infantil, foram tempos muito bons. O choque foi quando nos mudámos para a zona do carvão, uma zona feia e com ar mau, onde o contacto entre as pessoas era violento. Esse choque despertou em mim o desejo de beleza e liberdade, de fazer algo diferente das pessoas que tinha à minha volta”.
Gabriela Fragoso referiu depois a ideia de equilíbrio subjacente aos romances de Rothmann que têm a guerra como pano de fundo, falando de um equilíbrio entre a beleza e coisas desagradáveis. “Sim, esses dois livros não serão necessariamente poéticos. Os meus pais sofreram ambos na II Guerra. A minha mãe foi violada e o meu pai foi recrutado muito jovem para as SS. Há nestes livros cenas horríveis, mas espero que também haja algo que desperte a esperança”.
Guerra que, disse Rothmann, se fez sempre de convidada em sua casa, uma convidada silenciosa que, ainda assim, partilhava cada refeição sem vergonha de pedir um segundo prato: “Não sou um escritor clássico. Com 14 anos deixei de ir à escola. Trabalhei como pedreiro, enfermeiro, tipógrafo. Foi essa a minha escola, que teve um certo peso na escrita. Todos os membros das SS tinham uma tatuagem do grupo sanguíneo tatuada no braço. Dessa forma, a guerra esteve sempre presente a mesa quando o meu pai usava manga curta. Esta vivência gerou em mim uma espécie de vácuo que carreguei toda a vida. Queria saber o que estava por trás daquela melancolia profunda do meu pai, que era quase uma depressão. O porquê de não procurar ou de não ter amigos. Era um mistério para mim. Cheguei a dar-lhe uma agenda para escrever o que tinha na guerra, e ele respondeu-me: tu e que és o escritor. Tive então de inventar essa história, para colmatar o buraco na percepção que tinha do meu pai”.
Gabriela menciona o facto de o caso de Rothmann fazer parte de um todo silencioso, uma mudez anónima que, tal como a Guerra Colonial fez por cá, levou a muitos silêncios, traumas e inquietações familiares – bem como a estigmas sociais. “O não querer falar parece-me algo muito generalizado. Caso isolado será ter inventado uma história que não existia – mas que poderia ter existido. Compreendi isso quando a escrevi. Quanto estive em livrarias a falar do livro, pessoas vieram ter comigo a dizer que agora compreendiam esse silêncio. É também uma situação esquizofrénica: temos a percepção de que todos os nazis eram maus. E eram, mas nem todos foram voluntários. O meu pai sentia-se uma vítima. Depois da guerra todas as pessoas o viam como um agressor, o que o levou a deixar de querer compreender a vida e o mundo, caindo num silêncio profundo que cobriu toda a sua vida”.
E como deveremos agir perante o passado? Fazer dele pedra rasa e começar de novo ou nunca deixar de o recordar, mesmo não tendo lá estado e as décadas terem tratado de lançar uma camada de neblina sobre acontecimentos que parecem a milhas temporais? “O tema é trabalhado na escola mas de forma algo torpedeada. Há pessoas que dizem chega, agora temos de esquecer tudo, que isto não pode ser a tarefa da literatura. Pelo contrario, a literatura tem de manter viva a lembrança e a memoria para cada geração. Uma guerra nunca acaba, tem sempre repercussões nas gerações futuras, a nível físico por exemplo. Os horrores têm de ser mantidos vivos. Nós nascemos na História com todos os pesos que ela comporta. Nascemos da culpa de muitos que não tiveram culpa”.
Sobre o movimento de 68 e do facto de terem sido os jovens a denunciar o esquecimento a que os pais queriam votar a guerra, Rothmann disse estar na altura num outro hemisfério: “De certa maneira subscrevo-o. Mas tinha 15 anos na altura, queria era jogar futebol. Na Alemanha diz-se que por baixo dos trajes há poeira de muitos anos. Os antigos dirigentes nazis ocuparam lugares de destaque na Alemanha. Eu amava o meu pai e não podia aceitar isso. Sabia que era uma pessoa calorosa, boa, e não o queria sentenciar. Queria compreendê-lo”.
Será “Morte na Primavera” um livro aconselhável para jovens? “Não é certamente um livro para jovens. É um livro de um adulto escrito para adultos. Na escola alemã em Portugal, alunos de 17 anos leram-no. Alguns tiveram pesadelos, mas discutiram sobre o que poderiam fazer para que tal não voltasse a acontecer. A dimensão de ter de executar um amigo para não ter o mesmo destino é a de uma tragédia grega”.
E como se conseguirá essa distância quase clínica, que permite alcançar uma distância segura quando se escreve sobre coisa tão cruéis? No caso de Rothmann, parte acabou por resultar de uma situação traumática: “É um problema difícil, a isso só consigo responder: não sei. Trabalhei como enfermeiro, sei como o corpo funciona. Escrevi o livro, uma cena seguiu-se a outra, mas no fim senti: como foi isto possível? Há uma cena central na qual trabalhei meio ano. Pensei que não a conseguiria escrever, e estive quase a desistir do livro. No dia em que fui com a minha mulher a um certo restaurante, já lhe tinha dito que iria desistir. De repente dois homens mascarados apontaram-nos uma pistola e pediram-nos dinheiro. Pensei que seria um filme, até procurei por câmaras, mas era um assalto a sério. Apesar de ter dinheiro, disse que não tinha. E um deles apontou a pistola à minha mulher e pediu-lhe o telemóvel. Percebi que a coisa estava a ficar séria, e que bastariam segundos para que a pessoa de que mais gostas morra ou vá parar a uma cadeira de rodas. Então entreguei-lhes a carteira e eles tiraram todo o dinheiro. No dia seguinte consegui escrever a passagem em três horas”.
Quanto ao seu método de escrita, diz estar perto da ideia de maternidade: “Escrevo num rompante, como uma mulher que diz: agora quero um filho. Tenho de me isolar, vou para
perto do mar e escrevo uma primeira versão a lápis em papel, o que me demora cerca de três meses. Depois volto a casa e passo a computador, mas por vezes e difícil perceber a minha própria caligrafia”.
Escritor que tem a guerra no centro em vários dos seus romances, evitou com muito estilo cumprir o serviço militar: “Não fiz serviço militar. Quando tinha 18 anos, havia uma comissão de exame, onde poderíamos falar das razões para não cumprir o serviço militar. Tinha lido Schopenhauer, e na altura dei uma justificação baseada nisso. Na Alemanha, se uma pessoa fosse para Berlim ocidental não precisava de ir a guerra. Ou optava por um serviço de substituição, que demorava ainda mais do que o tempo do serviço militar”.
Relativamente a pesquisa e fontes, Rothmann deixou de lado os pesados manuais de História, preferindo ir beber a uma fonte mais binária: “Não fiz a pesquisa numa biblioteca de forma tradicional. Quem me ajudou foi o meu smatphone. Tenho uma visão especial, consigo recriar histórias a partir de fotografias. O escritor deve traduzir nos seus livros aquilo que vem da sua imaginação”. Gabriela aproveita para brincar dizendo que, no seu caso, o smartphone acabou por não ajudar lá muito com a tradução para português de “Morte na Primavera”, tendo de recorrer a um amigo historiador.
Gabriela Fragoso refere o papel das mulheres que, no livro, parecem superficiais, pouco importantes, pouco parciais e sem cor. Representam estas comportamentos (re)forçados pela guerra? “Tratava-se apenas de assegurar a parte material e de ter a esperança de que os homens que amavam voltassem ilesos. O facto de a minha mãe ter sido violada foi marcante, não deixou que alguém mais se aproximasse dela”.
Para lá do lado feminino pouco participativo, Gabriela fala de uma linguagem lacónica que não permite avaliar sentimentos: “Ao ler o seu livro senti que estava perante um filme. Imagens sem explicações, mostradas sem participação. As personagens são muito enxutas, sóbrias, um parece um livro silencioso no qual as granadas estão sempre a explodir”. Uma atmosfera consentida por Rothmann: “Neste caso foi um princípio consciente. Como não a vivi não posso dizer o que as personagens sentiram. Mas o meu conceito do que é escrever resulta na convicção de que seja o próprio leitor a tentar compreender as emoções”.
Referindo-se a Günter Grass como alguém que nunca poderia ser um modelo para si uma vez que se voluntariou para as SS – mas aceitando Erich Maria Remarque como uma das suas influências -, Ralf Rothmann falou da escrita como necessidade, mas também como um espelho que permite compreender o seu próprio objecto inspiracional: “Um autor escreve sempre os livros que tem de escrever. Ele tem de escrever esses livros. A realidade e o quotidiano ajudam-no nisso. Tem de se observar tudo porque tudo é um sinal. A vida quotidiana ajuda-me muitas vezes em situações para as quais não tenho saída nos livros. A minha mãe batia-nos, era uma pessoa brutal, e quando soube o que se tinha passado com ela durante a guerra deixei de a criticar. E daí nasceu um outro livro, a continuação desta primavera”.
No final, Ana Sousa Dias, curadora do Folio Autores, deixou a promessa de que o futuro trará a Óbidos mais escritores alemães.
O Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos continua até dia 20 de Outubro. Consulte aqui o programa.
Fotos: Luísa Velez
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