Libertem o Adamastor | Semana a começar com concerto de Peter Evans, no ciclo Som Crescente – Som Crescente#2 (ZDB – 30 de Setembro), e quase a terminar a mesma, no lado certo do rio (Barreiro), Igreja Paroquial de Santo André no âmbito do Out.Fest. Outra vez Peter Evans. Numa época em que estão altamente desaconselhados os excessos, e em que muito provavelmente a Grande Farra de Marco Ferreri seria alvo de acto censório por uma ASAE, era de todo prudente não repetir a dose. Em boa hora libertámos o animal selvagem, aquele que nos empurra e que nos diz entre o trocista e o convicto – mais um nunca é demais! Abraçamo-lo. Abraçámo-lo aos dois: ao trocista interior e a Peter Evans. Se, na segunda-feira, a apresentação foi feita com base num reportório definido – Pauline Oliveros, John Zorn, Anthony Braxton, Béla Bartok entre outros -, desta feita Peter Evans assumiu um registo que é mais próximo daquilo que lhe conhecemos: a utilização do trompete nas suas múltiplas possibilidades e infinitas variações. Mais uma, sempre mais uma.
Devemos muito ao trompetista nova-iorquino. Somos credores de uma nova forma de olhar. Se, há uns anos (2014), no Panteão Nacional, o instrumento era máquina contínua de construção, loops sobre loops que nos submergiam a cada nova vaga ou, mais recentemente, no Museu do Chiado (2019), em que abocanhava o microfone transformando-o em primo próximo de uma prensa de sucata, desta feita a utilização do espaço e as características acústicas inerentes permitiram um jogo muito consistente entre o som emitido e aquele que nos/lhe chegava e era (re)transmitido. De uma forma límpida, clínica quase, mas com a veemência que lhe conhecemos. Exorcização dos demónios em frente a um altar inacabado, mas também a certeza de que no excesso não há pecado. A prová-lo, nova vontade em repetir dose, em o ver novamente, independentemente de formato e reportório.
Entre o dia e a noite descubro lugar | Segundo dia do Festival e nova igreja, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário – concerto de Kali Malone. Deixámos a periferia. A circular e a rotunda viária já não são fronteira, o rio é o limite. A tarde caminha em sintonia com a cidade – calma, sem petulância ou altivez, propícia a contemplações. Sentados, compenetrados a fixar o altar. A disposição é certeiramente equívoca. As primeiras palmas dão-nos algumas pistas. Tudo começa atrás de nós. Em cima, o órgão e Kali Malone, nós em baixo e de costas. Recordar que estes momentos são de escuta. Ouvimos. Temos de ouvir. E faz-se de várias maneiras – de cabeça para baixo, posição contraída em que o fluxo de energia deve estar concentrado num só ponto ou, pelo contrário, deixar-nos levar e distraidamente ver como cada um absorve a experiência. O fascínio por este tipo de instrumentos (órgãos) da artista americana radicada na Suécia é sobejamente conhecido, não fosse e meramente a título indicativo o seu mais recente álbum, The Sacrificial Code, trabalho maior nesta matéria. Exercício apurado, detalhista e minimalista quanto baste e, sobretudo, decorrente de um processo de pesquisa sobre as dinâmicas do mesmo. É precisamente nos pontos de ligação entre um instrumento “tradicional” com os sintetizadores que surgiu um dos momentos mais marcantes. Enquanto se ouvia o prolongar do órgão ao longo da nave central, Kali aparece no altar. Um jogo de estou/não estou que nos leva a questionar o conceito de concerto: há necessidade de nos centrarmos num ponto para se ouvir melhor? A inexistência, mesmo que aparente, do músico, diminui a intensidade do momento? Questão antiga e trabalhada por projectos muito distintos, mas em Kali Malone sobressai a capacidade em manter a continuidade sonora introduzindo um corte visual, consequentemente uma atmosfera nova dentro do mesmo espaço. A transição do dia para a noite faz-se com a intensificação sonora de cada momento. Cada camada é levada ao limite da exaustão temporal e, com isso, a extensão do próprio concerto. Cada instante assume um estado de “pré-eternidade” e nós por lá bem perto. Um dos momentos altos do festival e muito certamente do ano.
Aquele par de botas fita-te | Quatro colunas delimitam o espaço. O espaço que ganha contornos de memória nova por cada projecto apresentado. Se o ano passado o jogo cromático e sonoro de Toda a Matéria tornou-se momento sublime – que infelizmente não teve novas apresentações -, este ano a “responsabilidade” coube a Von Calhau!, projecto de Marta Ângelo e João Alves. Dois que se reconfigurou em três com a participação de Andresa Soares. Um registo na sua forma pouco utilizado pela dupla do Porto, somente no âmbito da Boca 2017, com a participação de Vasco Alves. Independentemente da “configuração numérica”, o universo continua carregado de uma ironia muito própria, atemporal e causando um permanente estado de desequilíbrio no espectador – “a rasteira continuum”. O Buster Keaton em fato de astronauta. Uma colher de pau, como desta vez, um par de botas de cowboy como em Re volta Subicida (Culturgest 2016), a trança de cabelo como elemento percussivo (Boca 2017), uma cortina negra que só se abre instantes antes da performance terminar (Maus Hábitos 2016 – Exposição de cartazes do colectivo Arara), um nariz que espirra água (ROTORNARIZ – Galeria Pedro Alfacinha – 2017) ou, simplesmente, um lençol prata (Festival Rescaldo – 2014), são todos dispositivos utilizados que não têm como princípio dar origem a um gabinete de curiosidades, antes um ponto que acrescenta uma nova leitura à matéria que a dupla vem trabalhando há já alguns anos – a questão do duplo significado, como o objecto se pode transformar através de um uso novo e sobretudo como nos posicionamos, reposicionamos ou não nos posicionamos a cada instante. A cosmogonia habitada por seres de diferentes épocas, satélites das cavernas, telecomandos renascentistas, transístores da nova Vandoma. Aparentemente surrealista porque, se há cosmos e nele habitamos, é porque muito provavelmente nada disto faz sentido. Nota – confirmar tamanha premissa em novo espectáculo no dia 17 de Outubro no novíssimo TBA. Ou então contradizer tudo isto.
Memórias maiores | De converseta, muita converseta se faz um festival. Geralmente em torno de concertos anteriores. Um que já é habitual referir, no Olimpo dos mais citados, conta-se o de Pan Sonic, Cacilhas – Festival Reset. É tal o misticismo em torno do mesmo que quem esteve presente jamais o esquecerá, quem não esteve chora ou em nenhuma das outras duas cria terceira hipótese: estive lá só pelo que ouvi contar. A influência e o carácter do projecto criado por Mika Vainio e Ilpo Väisanen é de tal magnitude que impregna muito do que ainda hoje se ouve. Não por acaso, a apresentação a solo de Ilpo Väisanen gerou expectativas bem altas. A comprovar o facto de uma sala até ao topo do terceiro anel. Fiel, coeso, um corpo íntegro de matéria cósmica feito de adição de pequenas partículas. Minimal, mínimo, ínfimo. Ponto, camada, espaço. Como se no início, no início do início, houvesse uma origem. O mais ínfimo da matéria. O ponto onde tudo está prestes a explodir. Não foram sete dias. Isso é para Deus. Para Ilpo há o seu tempo, há uma construção de um onde e, sobretudo, um quando e o quando é quando ele decidir que se deve. Concerto de suspensão, de transições e de densidade. Cada ligeiro rodar de botão é para dar carga. É negro e não é só hoje. Negro o dia à dia. Muito provavelmente negro o futuro, aquele que já nos resgataram. Uma cosmogonia que Goya não teria desdenhado pintar.
O amanhecer é fodido | De tons claros se constrói tortura. O caminho ao longo do rio é convidativo. Cinco mulheres passeiam pelo passadiço e as duas da frente de mãos dadas. A alegria de Sábado à tarde. Um novo espaço – Moinho da Maré Pequeno – e uma relação que deveria estar mais presente no festival, a linha entre o construído e o natural. Da plateia avista-se rio e sol. Entre nós a parafernália de Bezbog – mesa de mistura, trompete e saxofone, tarola. E, sobretudo, chapa metálica suspensa. Bezbog, duo ligado, também ele à Faculdade de Belas Artes do Porto, trabalha a matéria, matéria sonora. O arco a raspar ligeiramente a chapa. Sem pressas, preciso, compassado. Entra o saxofone, do outro lado. Há diálogo, mas há sobretudo caminho. A marcação é feita. Ponto por ponto – forma. Mais um e outro atrás, um ponto. Acumulam-se, agregam-se e acomodam-se na mesa. As camadas avolumam-se, as linhas transformam montanha. Adensa-se, entra o trompete. Alvorada! Ou não, pode ser mais suave. Acumula-se, acomodam-se tomam o seu lugar à mesa. Novamente a grande farra. Pau na tarola – Pauh!!! Exclamação. Resiliência/resistência. Só os dois, ou uno em total sincronia. E a dupla do colectivo Favela continua – volta a chapa e o sax. Meticulosos, astutos. Pergunta – Resposta. Som – Sobressalto. Se Lopes Graça em boa hora compôs “Acordai!” Bezbog são o seu/nosso coro contemporâneo.
Labruge é oceano | A Biblioteca Municipal seria, na grelha definida por Marc Augé, a excelência do lugar. No Barreiro, estaria mais próxima de um não lugar. Edifício não particularmente interessante, sem o carácter magnânimo da casa do saber por excelência. Talvez e precisamente por isso, se torna o local de encontros imprevistos. No fundo, o conhecimento tanto pode provir dos livros como das experiências que por lá acontecem. Poiso de alquimias. Na edição anterior – aula de historia, de musicologia e de uma geografia de contornos infinitos. Todos naquela sala envidraçada ao meio da tarde ficámos a conhecer o mar de Labruge, simultaneamente geografia, antropologia e mitologia. Foi no concerto de Cândido Lima. Este ano, noutra sala, de gente sentada e estirada, a proposta passava por um encontro a quatro – André Gonçalves, Clothilde, Keith Fullerton Whitman e Simão Simões. Na aparência e na categorização simples, poder-se-ia pensar que trabalham o mesmo campo. Até podia ser assim, mas não necessariamente da mesma forma. Isso decididamente não. E a curiosidade, esse motor em rotação elevada, passava precisamente por dois pontos: por um lado saber como se construía o conjunto e, por outro, até que instante este todo não diminuiria cada ângulo da figura geométrica perfeita por excelência – o quadrado. O conhecimento do trabalho de cada um salvaguardava a coesão do exercício, e o facto de se saber que evoluiu ao longo de uma semana de ensaios intensos nos estúdios da ADDAC aumentou a garantia. À frente de uma parede de sintetizadores modelares, respectivos cabos e luzes, a meticulosa Sofia (Clothilde), sentada de auscultadores ou sem eles, a acrescentar a sua visão. Ao lado, em pé, o Simão, sem assomos, sem sobressaltos a somar peça na engrenagem. Em frente dos dois o André Gonçalves, zen, e a extensão do filamento composto. O nó sai-lhe perfeito, tão natural como um enrolar de uma mortalha. E, mesmo de costas, imaginamos que o Keith comungasse de igual estado zen. Mantra, manta. Sobrepor, retirar, somar, reequacionar demonstrando que o equilíbrio não se encontra em forma fixa, antes na descoberta de nova combinação.
Casaco laranja suspenso no rio | Regresso ao Moinho da Maré pequeno. Concerto de Violeta Azevedo. De início havia alguma relutância em assumir-se a solo. Talvez por colaborar em inúmeros projectos – Savages Ohms, Jasmim, em duo com Rui Antunes e outras tantas colaborações pontuais ou por outro motivo -, Violeta apresentava-se em nome próprio em momentos muito pontuais. Desde o primeiro concerto, juntamente com Nocturnal Emissions, até ao de hoje, foi longo o processo. Não em anos, mas na certeza que cada passo é o apropriado na criação de uma entidade sonora, mas também visual – em boa hora esqueceu as projecções. Janela aberta, o vento entra. Sentada, Violeta e a flauta transversal. Aos pés, os pés descalços, os inúmeros pedais e colado na perna mais outro pedal. Os sons libertam-se, nunca são atirados. Não há acaso. Há uma rota inicial que depois pode assumir caminho não previsto. Reminiscências bucólicas, contextos florestais são todas associações válidas. E o bando que dançou no céu, minutos mais tarde no Largo do Mercado 1º Maio, por aqui começou.
Da bruma | Palco alto, o dos Penicheiros. Lá James Ferraro. E na bruma entrei e desapareci.
Fotos: Pedro Roque
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