Há escritores que gravam, no papel, palavras que cortam como facas afiadas, numa linguagem que, ao invés do excedentário ou do ornamental, aponta antes a uma simplicidade poética que põe a cru as emoções humanas mais primárias. Um dos maiores artífices desta escrita em carne viva dá pelo nome de Ian McEwan, escritor com já uma dúzia de romances onde a melancolia e o irreparável estão, quase sempre, presentes. É o caso de “A Balada de Adam Henry” (Gradiva, 2015), o seu último romance que, em menos de duzentas páginas, consegue deixar o leitor a fazer um exercício de revisão existencial a grande profundidade.
A história segue os passos de Fiona Maye, uma proeminente juíza do Supremo Tribunal que julga casos do Tribunal de Família. Apesar de uma carreira de sucesso, sendo reconhecida – e elogiada – pelos seus pares como alguém extremamente inteligente, rigorosa e sensível, Fiona tem o casamento à beira da derrocada – o marido diz-lhe que se tornaram irmãos e, aos sessenta anos, pretende viver uma relação apaixonada com outra mulher. O facto de também nunca ter tido filhos, num adiamento que julgou sempre ser temporário, chega agora com uma grande dose de remorso, amargura e arrependimento.
Entre os casos que tem de julgar, muitos deles girando em torno da propagação estatística dos divórcios, está um de extrema urgência que envolve Adam, um rapaz de dezassete anos que recusa o tratamento médico que lhe poderá salvar a vida, assim como os seus devotos pais. Numa questão de horas, caberá a Fiona decidir se respeita a vontade de Adam e dos pais ou se, por outro lado, decidirá a favor do hospital, forçando Adam a aceitar uma transfusão sanguínea.
O livro está, porém, muito longe de ser um simples olhar sobre como a religião pode ou não interferir na ciência, na medicina e no destino individual. Toca, antes, o papel que escolhemos representar na curta existência, das máscaras que usamos e do esquecimento de que, por detrás de toda essa teatralidade e aparato, há uma essência que deveria ser cumprida e não amordaçada. E, também, de como esse egoísmo abre portas e janelas para a entrada triunfal da fatalidade.
Ian McEwan apresenta, em “A Balada de Adam Henry”, um retrato singular de um juíza dividida entre o papel de semi-deusa e uma grande fragilidade emocional, ao lado do de um jovem adolescente atirado contra a parede, incerto sobre se as convicções que nele habitam serão herdadas, pensadas ou simplesmente sem terreno para cultivo. Um romance muito cruel – e assombroso – sobre as relações humanas.
Sem Comentários