Poucos esperariam certamente que, no concerto de piano que deu na Culturgest, Lubomyr Melnyk se – e nos – divertisse a falar de Kung Fu, Tai Chi, Harry Potter ou daquele quarto do Twin Peaks onde ninguém quer entrar, isto para lá de uma ode à mecânica e uma quase oração a Deus nosso senhor.
Já com setenta primaveras completadas, Melnyk foi o inventor daquilo que ficou conhecido como continuous music, que em português é qualquer coisa como teclar como se não houvesse amanhã. Se procurarem o seu nome naquele livro que regista todo o tipo de recordes mundiais, vão-se cruzar por duas vezes com o nome do pianista ucraniano associado a uma destreza só ao nível dos maiores ilusionistas ou carteiristas: o Guinness registou um máximo de 19,5 notas tocadas em cada mão por segundo e, numa hora, conseguiu a estonteante média de 13 e 14 notas em cada mão.
Antes do arranque e após os agradecimentos como manda o espírito clássico e a boa educação, Lubomyr tratou de mostrar os galões e as medalhas, falando de ter criado uma nova era onde foi permitido ao piano cantar, ao contrário dos mestres de outrora: “Mozart e Bethoven são magníficos, mas a verdadeira alma do piano não está lá. A criação da continuous music é o que lhe deu alma. O que vão ouvir é impossível a outros intérpretes tocarem. É difícil explicar, é como o Kung Fu ou o Tai Chi. Se quiserem mesmo saber terão de ver o filme “Hero”, de 1996. Quando o virem, lembrem-se deste concerto, e de que não é fantasia: é real“.
Ainda antes do arranque, Lubomyr falou da misticidade do som, a fonte de tudo aquilo que temos – “até da luz“, disse, acrescentando um comentário sobre o feiticeiro de nome Harry Potter: “Quando ele quer fazer magia, essa apenas acontece não quando as palavras são pensadas mas sim quando são proferidas. É o som que faz a magia“. Assim como na Bíblia, lembrou, com o seu “let there be light“.
Chegou então o momento de apresentar a primeira peça, intitulada “Illirion”, “um nome inventado, mítico, da Grécia Antiga“, belíssimo momento ao piano muito longe da convulsão que descobrimos em “Fallen Trees”, disco de 2018 que trouxe o nome de Lubomyr para a linha da frente carregado por “jovens” como Nils Frahm ou Peter Broderick, que lhe dispensaram bastantes elogios.
Na introdução a “Butterfly” disse esperar que outras pessoas queiram aprender a tocar com a sua técnica, “não necessariamente à velocidade a que eu toco“. Um tema com uma parte considerável de continuous music e que, tal como prometeu Melnyk, permitiu que se ouvisse não uma borboleta mas uma turma inteira delas.
Seguiu-se “Love Song”, uma homenagem a Bonnie, a parceira de crime e de cama de Clyde, por quem Lubomyr se deixou encantar quando viu uma foto sua datada de 1935: “She was powerfully beautiful“. Tema tocado ao vivo sobre um outro registo pré-gravado de piano, que tenta captar aquele primeiro momento em que Clyde se terá apercebido da beleza daquela mulher. Mas isto só depois de ter cascado no Spotify por pagar tostões a quem lhe dá a ganhar milhões a cada dia e de ter dito que, quem quiser aventurar-se no universo da continuous music, terá de conseguir ter a disciplina de Rocky Balboa e ir ao ginásio todos os dias.
Para o final ficou reservado o “drama musical” intitulado “Windmills”, que Lubomyr tratou de explicar de modo a que pudéssemos compreender a peça que lhe demorou seis anos a compor. A música de todo o seu reportório onde diz tocar mais depressa, aproveitando para avisar que, se virmos no youtube alguém dizer que consegue tocar tão depressa quanto ele, estaremos a presenciar um embuste.
“Windmills” conta, então, a história do despertar de um moinho que, com o aproximar de um furacão e graças às leis da mecânica, acaba por conseguir tocar essa “música irrepetível e sempre em mudança“, alcançando o som da perfeição e aquele estado em que o tempo simplesmente não existe – o nirvana -, antes da inevitável tragédia da destruição. Já na ascensão, agradece a Deus por 400 e tal anos em que viu a beleza do mundo. “Somos prisioneiros num mundo de beleza“, disse, antes de mostrar a sua indignação por aqueles que olham para a beleza do mundo incapazes de a apreciar. Esses, disse, “não perceberam o último episódio do Twin Peaks. Ninguém quer entrar naquele quarto vermelho“.
Belo e desconcertante, foi assim o concerto de Lubomyr Melnyk na Culturgest, onde curiosamente não vimos qualquer falling tree. Em compensação, pudemos assistir ao nascimento, morte e ressurreição de um moinho de vento. O “Dom Quixote” de Cervantes acabou de ganhar uma banda sonora de mais de quarenta minutos.
Fotos: Vera Marmelo
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