Em “O Nome do Mundo” (Companhia das Ilhas, 2019) temos uma compilação de vários textos de José Amaro Dionísio, já anteriormente publicados entre 1969 e 2019. O livro integra conteúdos revistos provenientes de Notas sobre a Circulação de um Corpo, Bardo, Todo o Alfabeto dessa Alegria, A Sombra do Sangue, O Nome do Mundo (reunião dos livros anteriores, publicado em 1996), Nada Serve, Vais por um Caminho muito Estranho, Walther, 9mm e Vem (inéditos). Na parte A Sombra do Sangue são reproduzidas 4 pinturas de Eduardo Batarda.
José Amaro Dionísio, nascido em Faro em 1947, é repórter desde 1969 numa vintena de países. Sucessivamente expulso dos média por onde foi passando ao longo de décadas, publicou também algum jornalismo em livro.
“Só se pode escrever aquilo que se é e aquilo que se é está sempre a fugir-nos da mão” (em Vem).
Cada obra, que inclui uma epígrafe usualmente maravilhosa e pertencente ao que se segue, é um conjunto de textos, pequenos. O tamanho não impede a transmissão do que se tenciona: “Não sabemos o que somos, e morremos disso” (em Walther, 9mm).
Os textos abrangem o enlace entre a criação ficcional e a prosa poética, com rasgos autobiográficos-consequência da indução de uma aparente perspectiva testemunhal forte do autor, onde a experiência se verifica o elemento essencial de ligação com a vida. Por momentos, a conexão entre as “sequências” das obras ressalvam algo abstracto, panorama quase absurdo, no sentido não pejorativo da palavra: torna-se “desafiante” e difícil seguir a linha do autor. Uma interligação textual incessante, com momentos de sóbria obviedade e outros de acentuada imperceptibilidade, onde a incoerência ou incoesão não são falhas internas porque são pincéis do estilo de construção do autor.
As vastas referências espaciais (um livro, especialmente, para quem conhece Lisboa, as suas ruas e tabernas) e temporais, situam o leitor em excertos “dimensionalmente” delimitados (“É domingo, digo-o para que se saiba a suspensão das ruas” em Notas sobre a Circulação de um Corpo). Reinam hipérboles, metonímias (ênfase na transformação do real no ainda mais humano) e aliterações (“O homem avança, os travões travam, as buzinas buzinam”, “Murtas mortas povoam o campo dos Mártires da Pátria” em Bardo).
Sempre espelho do cru, prático, quasi-decadente da vida: inúmeras referências ao trabalho/emprego (“Esta rua posso reconhecê-la sem pressa, em direcção ao largo, nos intervalos da procura de novo emprego” em Notas sobre a Circulação de um Corpo), filhos (“Apenas o tempo passou e nos nasceu um filho.” , “Uma noite muito mais tarde viríamos a falar de mar e mastros e no meio disso um filho.”, ambos em Notas sobre a Circulação de um Corpo), morte (“… há coisas que só dizem para em seguida morrermos” em Bardo), dinheiro (“De manhã levantar-se-ão, vestem as camisolas que têm, há na mesa o leite de dinheiro inventado e saem para a escola” em Bardo), doença (“Tomam, ela, o valium 5 do seu frasco e, ele, o valium 10” em Bardo) e sexo (“…venho-me e grito o teu nome…” em Todo o Alfabeto dessa Alegria).
Os problemas são apresentados de uma maneira sarcástica, sem pretensão de estilo elitista: estabelece-se a “cara” do tédio (“O único problema do homem é que é um bicho para morrer – como todos os outros, já se sabe. Mas, desgraça maior, ao contrário de todos os outros passa os dias a inventar o que pode para iludir isso” em A Sombra do Sangue) e predomina a honestidade do negro (“… sempre soube o sono que se trata apenas de aprender a morrer” em Nada Serve).
Há beleza no “trânsito” de imagens que é encorajado pelo autor, numa envolvência de informalidade, porque os textos se assemelham a um grande discurso e a leitura é um ouvir da sua voz (que no interior do leitor ecoa como agonia compenetrada), onde a falta de vírgulas ou o excesso de vírgulas para discursos, e a versatilidade do narrador, se justificam pela rispidez oral intencionada (“… ele sente uma urgente vontade de ir à retrete, com licença, procura o WC mais à mão, recua ao abrir a porta, é só merda e papelada suja, corre a apertar a barriga para a retrete da carruagem, há mijo para pôr o planeta à chuva…” em Todo o Alfabeto dessa Alegria). Fala para nós, enquanto leitores, em “conversa de café”, da rua na rua, de forma pura, com palavrões, blasfémias, obscenidades, expressões do dia-a-dia, “ordinarices”: impropérios que embalam a desolação realista pretendida (“Nunca fodi com um gajo tão bruto” em Bardo) e linguagem “ordinária” a fazer mimética com as situações expostas (“… fica a falar ao cu do comboio…” em Todo o Alfabeto dessa Alegria).
Recebemos um visual pornográfico com inevitável culminar em violação, que mulheres aparentam aceitar ou estar habituadas a (“… o cu desta senhora até me entorna as imperiais” em Bardo) e uma definição de amor, que é um “nada” renegado (“Eu não fui ao cinema para arranjar namoro, caralho” em Bardo), objectificado em corpo, sujo (“… apenas o amor e as palavras são dois crimes sem perdão” em Todo o Alfabeto dessa Alegria) e violento. As filosofias, aqui, abraçam o erótico, “… no mistério do orgasmo, esse lugar onde perdemos tudo o que julgamos ser e ganhamos tudo o que realmente somos” (em Vem).
Estamos a par do depois (“Aprenderás a partir, partirás” em Notas sobre a Circulação de um Corpo), e ainda mais do presente, num sentimento de revolta em conformação com as “trevas” da tristeza (“… apenas serve para descobrir que não há ruas por reinventar” em Notas sobre a Circulação de um Corpo), com uma panóplia de perguntas, “Em que instante se lê uma carta que se deixa sobre a mesa?” (em Notas sobre a Circulação de um Corpo) ou “É isto? É assim? É tudo?” (em Vem) e uma ausência de respostas. “Boa viagem e poucos furos” (em Bardo).
Aconselha-se a leitura de “O Nome do Mundo” a quem se revê na sinceridade de Bukowski, a quem ganha consolo a partilhar palavras sobre a barbaridade infeliz da vida e a quem sente prazer a ler algo “agitado”, de assaz sexualidade, que parece querer fazer-se ouvido.
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