Se pudéssemos fazer um teste de paternidade ao género cyberpunk, haveria um ADN a surgir destacado: o autor americano William Gibson foi pioneiro na criação do estilo, com o seu primeiro romance, “Neuromancer”, editado em 1984. Aí delineou alguns dos atributos-chave deste subgénero da ficção científica: marginais e alta tecnologia, desigualdade social e opressivas corporações, paisagens urbanas banhadas em reflexos de néon, cínicos anti-heróis e femmes fatales cibernéticas sempre de faca na liga.
“O Periférico” (Saída de Emergência, 2019), é a mais recente incursão de Gibson a este universo. A acção segue dois protagonistas em dois tempos diferentes: a irrequieta Flynne Fisher vive no Alabama rural, cerca de uma década e meia no futuro; Wilf Netherton, por seu lado, vive 70 anos mais à frente, numa Londres pós-apocalíptica, marcada por um evento catastrófico em slow motion conhecido como o Jackpot: as alterações climáticas, aliadas a um sortido de maleitas e doenças, deixaram a Terra quase despovoada, governada por multinacionais, oligarcas e outros poderes obscuros.
A Londres de Wilf é enigmática, repleta de tecnologias esotéricas, aterradoras geishas robotizadas, tatuagens em movimento e nano-montadores assassinos (será melhor chamar-lhes desmontadores?). Há ainda um próspero negócio de aluguer de periféricos, ou seja, corpos que podemos habitar à distância.
Já o mundo de Flynne é o nosso mundo, ligeiramente mais futurista. É uma América degradada, onde não há empregos de jeito para além da manufactura ilegal de drogas ou Mcjobs em lojinhas de impressão 3D. O irmão de Flynne, o ex-marine Burton, pede-lhe um dia para fazer o turno dele num suposto jogo de computador – neste mundo é vulgar os milionários pagarem a outros para jogarem por si.
O trabalho parece simples: pilotar um drone de segurança e manter afastados outros drones-paparazzi de uma festa que decorre num arranha-céus. É então que Flynne testemunha o assassinato de uma mulher numa varanda – a vítima é atacada por nano-assassinos, dir-se-iam mini moto-serras voadoras, que a consomem de dentro para fora até sobrar só a roupa. A seu lado Flynne vê um homem, cúmplice do ataque.
A jogadora despreza o sucedido como “mais um jogo macabro”, mas vem a saber que o que aconteceu pode ser mais real do que imaginara. É nessa altura que Wilf Netherton a contacta. O relações-públicas trabalha para a irmã da vítima, uma artista de performance/diplomata/estrela de reality-show. Se a história parece um pouco confusa, é porque é mesmo: durante os primeiros capítulos andamos às aranhas para perceber o que se passa. Só a meio do livro começamos a orientar-nos nestes estranhos mundos.
Netherton procura o homem que Flynne viu na varanda, peão de uma cabala com ligações ao mais alto nível. Usando um corpo artificial – um periférico -, Flynne consegue saltar entre passado e futuro para ajudar a resolver o crime. Mas rapidamente percebe que o que viu lhe pintou um enorme alvo nas costas.
Gibson tem uma imaginação detalhadamente complexa, e apresenta neste livro conceitos muito originais – os periféricos, as “chancelas” (espécie de telemóveis comandados por um íman na ponta da língua), os Medici (pequenas geringonças que servem de hospitais, curando até os ferimentos mais graves) e muitos outros artefactos. A escrita é tremendamente visual, e há personagens que dariam “bonecos” fabulosos no ecrã – parece que a Amazon já está a preparar uma série baseada neste livro, pelos mesmos criadores de Westworld.
Ainda que a estrutura lembre a de um policial noir, a história é por vezes difícil de acompanhar, principalmente no início, devido a uma profusão de capítulos curtos e não-lineares, com muitas personagens em tempos e pontos de vista distintos. Ainda assim, os universos desenhados pelo autor são fascinantes e imersivos, o que faz com que esta viagem no tempo valha muito a pena.
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