Aos olhos de um marketeer mais atento, o concerto de Mitski tinha tudo para servir de lançamento mundial a uma nova colecção de mobiliário de regresso às aulas, pensando com os seus botões numa forma de o logótipo do IKEA – ou de qualquer outra marca concorrente – poder aparecer, muito discreto, no canto do ecrã que servia de decoro minimalista.
Eram provavelmente muitos aqueles que, antes da entrada em cena de Mitski Miyawaki, faziam exercícios mentais sobre o papel que aquela mesa e cadeira teriam no concerto desta americana de 28 anos, nascida no Japão, que antes de procurar casa em Nova Iorque viveu em treze diferentes países, trazendo essa indefinição sobre a pertença para dentro da sua música.
Após a entrada ao som de uma qualquer espanholada – deseja-se que tenha sido opção e não um caso de geografias trocadas -, mostrando um ar glacial sem o mínimo vislumbre de um sorriso – a fazer lembrar PJ Harvey e os tempos em que esta deixava tremer a Inglaterra -, Mitski dá início à sua instalação sonora, qual colegial com protecções nos joelhos, num mundo animé onde o varão deu lugar a uma secretária que parecia representar a violência e a pressão social exercidas sobre a mulher, mesa onde actuou como contorcionista, cantora, ginasta, showgirl e actriz.
Neste teatro onde cabem todos os sonhos de Mitski, desfilaram temas de uma carreira que começou no cinema e que, bem a tempo, se virou para a música. Foi uma delícia a forma autoritária e descomprometida com que mandou embora os fotógrafos – “Já tocámos três” -, o tremendo manguito que fez ao capitalismo, o ar de ginasta olímpica com que fechava cada faixa, ou a forma sentida como cantou temas como “Two Slow Dancers”, que teve direito a um coro tímido. Uma mistura de beleza, sensualidade e estranheza que fez deste o mais marado concerto desta edição.
Há seis anos atrás, naquele que foi o seu último concerto em Portugal em nome próprio dos Suede, Brett Anderson, um dos maiores e mais estilosos e sensuais performers que a música já nos mostrou, entrava com tudo. Após os temas da praxe para captação de imagens, despachava os fotógrafos com um amoroso «you guys fuck off» e, não contente com a entrega do público, lançava-lhe um ultimato que mais parecia um cocktail de soda cáustica: «If you don`t dance fuck yourself».
Ao longo da história da música, não faltam exemplos de guerras de protagonismo promovidas entre – é quase sempre assim – o vocalista e o guitarrista de bandas do universo pop, umas resolvidas com reencontros, outras com desencontros e, outras ainda, com o lançamento da bomba atómica. Foi assim com os Verve, foi assim com os Smiths, foi também assim com os Blur – ainda que, em relação a estes últimos, a coisa se tenha resolvido com uns discos a solo e uns abracinhos. E, para aquilo que aqui interessa, foi também assim com os Suede.
Brett Anderson e Bernard Buttler deram-se razoavelmente bem entre 1989 e 1994, ano em que Bernard bateu com a porta e saiu dos Suede. Para trás ficaram dois grandes discos gravados em conjunto – “Suede” e “Dog Man Star” -, mas a história dos Suede, contrariamente ao que previa muito bom oráculo – talvez à excepção de “A New Morning” (2002) -, não se ficou por aí. Os dois ainda se reencontraram em 2005 para formar os The Tears, tendo dessa relação resultado um filho único – “Here Comes The Tears” -, mas parece que a coisa não pegou e o silêncio voltou a ser a etiqueta a seguir.
Depois de um hiato de uma década, os Suede voltaram à vida activa com um grande disco em 2013 -, “Bloodsports” – que, de certa forma, recuperava a aura iniciática da banda. Já em 2018, “The Blue Hour” acrescentava mais um capítulo a uma banda que, após a partida de Buttler, passou a ser a banda de Brett Anderson e amigos. Em Coura, tal como havia acontecido no Coliseu, foi raro ver Brett interagir com a banda, chamando a si todas as atenções, isto enquanto abria o peito às balas que, num cenário onde jogava fora de casa e onde a maior maior parte dos jovens festivaleiros talvez os conhecesse por uma versão radiofónica de “Trash”, não era propriamente muito favorável.
Porém, se há coisa que Brett Anderson mantém vivo, é o apetite voraz em ser amado, bem como uma sede enorme de ver uma plateia participativa. Em Coura, após apalpar terreno nos primeiros temas, percebeu que a montanha de adversidade que teria de escalar era maior que o Evereste, mas recusou fazer aquilo que a maior parte das bandas faria: tocar o alinhamento, mandar umas bocas pelo meio e ir à sua vidinha com o guito na conta bancária.
Aquilo que se viu nesta noite foi, de facto, algo de épico: um homem que se recusa a morrer, que quer fazer de um concerto uma experiência emocional, que faz tudo o que é preciso para amar e ser amado. Nem que, para isso, tenha de descer por várias vezes para junto do público – no meio do qual cantou “The Drowners”, do primeiro disco com já duas décadas, metade de outra e um ano extra em cima -, roubar a câmara a um dos cameraman para umas filmagens ao estilo de Blair Witch, oferecer o microfone a quem se queira chegar à frente, bater no peito enquanto canta com todas as forças, deitar-se de costas no palco como um soldado abatido ou, em alguns dos temas, improvisar, recorrendo a momentos de spoken word ou pura declamação poética que acabam por reinventar velhos clássicos.
Num incessante desfilar de êxitos, destaque para o momento acapella, solitário e estilosamente desafinado de “Wild Ones”, a magnífica versão acústica de “She`s in Fashion” ou a irrequieta versão de “New Generation”, sacado ao mais elegante longa-duração da banda – só faltou mesmo “Saturday Night” para compor o ramalhete. Uma pena que esta pop sofrida, romântica e imensamente trágica apenas tenha chegado ao coração de uns quantos, ainda que, na recta final, já não fossem poucos os braços a aplaudir esta tresloucada prestação de Bret, que deu tudo de si e deixou o palco a suar em bica. He`s still in fashion.
“Estou contente por estar de volta“. As palavras são da senhora Patti Smith, cantora, compositora, romancista, poeta, influência e musa maior do movimento punk que a cidade de Nova Iorque viveu por volta de 1975, a que Patti acrescentou o seu próprio monumento intitulado “Horses”.
Ao longo de uma carreira com contornos de lenda, Patti juntou a efeverscência do rock ao poder da palavra e da poesia, tendo recebido a Ordem das Artes e da Letras das mãos do Ministro da Cultura francês, ingressado no Rock and Roll Hall of Fame ou, tire-se-lhe o chapéu, conquistando o National Book Award com “Just Kids” – “Apenas Miúdos” na versão portuguesa, editada em Portugal pela Quetzal -, livro maior e biográfico que nos aproxima mais desta lenda viva e da bonita homenagem que decidiu prestar, com a edição daquele livro, a um companheiro de vida – se não chorarem ao ler este livro não são humanos.
Ao longo de um concerto onde todas as gerações em Coura pareciam estar um uníssono, foram várias as mensagens de Patti Smith que, aos 72 anos, ainda acreditar que conseguiremos dar a volta a uma extinção que parece ser mais do que certa: em “People Have The Power” lembra-nos de que temos o poder de votar, de escrever e de amar, e que nunca nos devemos esquecer de usar a voz que a cada um pertence; sobre “Are You Experienced?”, tema original de Jimi Hendrix – “o Jimi foi sempre peace and love” -, diz ser uma canção sobre a unidade, que todas as nossas crianças deveriam ouvir, criando um mundo global sem espaço para nacionalismos.
“Não temos muito tempo mas vamos aproveitá-lo bem“, diz Patti, aproveitando para fazer um pirete a Donald Trump e pedindo para que todos ergam as mãos em “Ghost Dance”, tema que escreveu a meias com Leonard J Kaye, com quem partilha o palco naquela noite. Aproveita para cuspir para o chão, atirando logo a seguir um “You are Beautiful”, momentos que precedem uma versão de “Beds Are Burning”, dos Midnight Oil, que faz a casa vir abaixo – se por acaso o telhado por cima das nossas cabeças fosse feito de tijolos.
Com “Beneath The Southern Cross” – canção que, na versão original, contou com a colaboração de Jeff Buckley – faz-se a homenagem a todos aqueles que perdemos, relembrando o dever de os manter vivos na memória, tratando de passar esse legado às gerações futuras.
“Somos livres. Sintam a liberdade, independentemente dos governos“, diz com profundidade, antes de um momento mais divertido: “Tenho um cabelo cinzento na boca, é muito valioso“. Seguem-se dois clássicos entoados em coro por uma multidão já rendida -“I`m Free”, dos Rolling Stones, e “Walk On the Wild Side”, de Lou Reed -, e uma versão do incrível “After The Gold Rush”, clássico pertencente a Neil Young do qual Patti Smith havia gravado uma versão em “Banga”. Não poderia faltar “Gloria: In Excelsis Deo”, tema com a vertigem dos Doors em pico de forma, onde Patti agradece a Jesus por ter salvo os pecados alheios – o mesmo Jesus com o qual se parece ter reconciliado em anos recentes. Dias depois, Patti Smith dizia que nunca se iria esquecer deste concerto em Paredes de Coura. Ninguém o vai, Patti.
Fotos: Hugo Lima
Promotora: Ritmos
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