No ano da graça de 1973, o ex-jornalista desportivo francês Claude Vorilhon, Raël para os amigos, afirmou ter estabelecido contactos com extraterrestres em diversas ocasiões, explicando a criação dos humanos como sendo obra dos Elohim, uma raça semelhante ao ser humano que usou o seu próprio ADN para criar uma versão mais ligeira de si mesmos. Não sabemos qual terá sido o dealer mágico que Claude terá encontrado e que lhe abriu as portas para uma dimensão paralela mas, tendo de arriscar aquilo que mais vai passando pelos seus headphones e outros dispositivos musicais, arriscaríamos um nome de olhos fechados: os Spiritualized.
Liderados por Jason Pierce, a chegada dos Spiritualized a Paredes de Coura esteve ao nível de um fenómeno com o selo Roswell: pousaram a nave de mansinho, fizeram análises ao solo, ao ar e à agua, raptaram um ou outro espécime para observação futura e saíram sem fazer grande alarido, pegando logo a seguir naquele dispositivo dos Men In Black para tentar apagar a memória dos que tinham ficado, siderados, à espreita por entre a folhagem.
Com o seu estilo rocker em introspecção, Jason Pierce assumiu o papel de um Rachmaninoff da guitarra, sentando-se diante de uma pauta, de perfil para o público, lugar onde permaneceu durante todo este concerto, nunca encetando diálogo com a espécie que veio observar – mas à qual, no final, agradeceu e muito.
No palco, no centro deste buraco negro da existência que são os Spiritualized, está uma banda de compinchas que ajuda a alimentar este sonho sónico de proporções épicas, destacando-se o coro sublime de um trio nada angelical, numa catarse musical que tanto ajuda a embalar como aponta ao sangramento dos canais auditivos.
Em 2008, Jason Pierce foi hospitalizado com pneumonia. Os pulmões ficaram cheios de líquido e o coração, esse malandro, parou por duas vezes, mergulhando-o numa inconsciência que viria a resultar no disco “Songs in A&E”. Já em 2012, o músico partilhava com o mundo ter o fígado num caco, resultado de duas décadas onde experimentou tudo o que havia para experimentar no que a drogas dizia respeito. Sujeitou-se de boa vontade a um tratamento que envolvia uma injecção semanal e a toma diária de uma série de comprimidos, numa residência forçada que o levou a escrever um disco baseado nestas novas drogas, é certo que menos excitantes mas recebidas com avidez pelo corpo: “Sweet Heart Sweet Light”. Já em 2018, chegou às lojas que ainda vendem discos e plataformas digitais “And Nothing Hurts”, onde a música parecia, de alguma forma, ter conseguido domar os seus demónios e paixões, entre baladas de fazer chorar o coração mais pedregoso e temas capazes de fazer sangrar os ouvidos de um surdo.
É precisamente neste limbo entre a vida e a morte, a euforia e a ressaca, a calma e a arritmia, que Jason Pierce tem criado a sua ópera rock espacial, acordes que parecem chegar de outra dimensão, letras que, de tão bem escritas, conseguem tocar-nos o centro da alma. Canções de quem está permanentemente na corda bamba, com o corpo ligado às máquinas e as linhas num constante desarranjo, à espera que venham bater no ombro e dizer que a viagem chegou ao fim.
Neste concerto que alcançou a perfeição, os trinta anos dos Spiritualized foram espremidos através do rock de proporções épicas de “Come Together”, do hino à solidão que é “Shine a Light”, desse piscar de olho ao enrolanço que é “Let`s Dance”, da aura transcendental e arranjos grandiosos de “Sail On Through”, ou da versão de “Oh! Happy Day”, que foi da escuridão cerrada à luz tranquilizadora. Não sabemos dizer se os Spiritualized são ou não a melhor banda do mundo, mas nesta noite bateram qualquer concorrência aos pontos.
Tal como quando aconteceu quando aterrou, a nave de Pierce levantou vôo de mansinho, fez-se à estrada cósmica e levantou, por instantes, a poeira da criação. Para trás ficou um concerto que foi, como tão bem se canta neste disco, a perfect miracle. Sorte danada a dos que lá estiveram.
Foi com a moral em alta que os First Breath After Coma pisaram o palco principal em Paredes de Coura, falando, logo a abrir, de “um sonho realizado“, no lugar onde tinha começado a sua vida de festivaleiros. Poucos dias antes e na companhia de Noiserv, a banda de Leiria havia dado cartas no Bons Sons, numa joint venture sobre a qual escrevemos estas linhas: “A união entre os First Breath After Coma e Noiserv foi mais do que um romance de verão, e muitos foram os que exigiram o casamento depois de terminado o descarado flirt de palco. Uma setlist escolhida a dedo, um jogo de luzes irrepreensível, humor, uma incrível dinâmica de palco e um concerto que fica para a história dourada desta edição. Foi bonito, rapazes“.
Aqui, mesmo sem o poder encantatório das luzes, a banda apresentou os temas do seu mais recente “Nu”, como “Feathers and Wax” – aquele cruzamento entre James Blake, Bon Iver e guitarras em desvario – ou “I Don`t Want Nobody” – “uma música feita pelo Rui às três da manhã“, não esquecendo hits para cantar de peito aberto como “Salty Eyes”, conseguindo o feito de criar um elo com um público que decididamente sabia ao que vinha: uma banda que navega entre o sonho e a inquietação, a timidez e o desafio, a sombra e o passeio debaixo de um sol abrasivo, mudando de pele quando é preciso em busca de fazer evoluir o seu post-rock de assinatura.
A surpresa maior ficou guardada para o final, quando a banda discursa sobre “uma residência artística, de onde saíram umas versões novas de um e outro lado“, preparando a entrada em cena de David Santos, aka Noiserv, que pegou na guitarra para juntar mais uma camada ao belíssimo “Blup”, do majestoso “Drifter”, e que acabou por actuar como maestro e líder vocal no seu “Don’t Say Hi If You Don’t Have Time for a Nice Goodbye”. Um casamento que se quer para vida e de onde sairá, certamente, uma tour conjunta – ou, pelo menos, uma rodela colaborativa.
Na sua primeira passagem por Portugal, os Balthazar mostraram ter muito estilo e, sobretudo, uma pop que acrescenta irrequietude aos muitos ecos que vão chegando com o desfilar de temas convidativos ao abanão: “Blood Like Wine” quase que poderia ser um tema dos Prefab Sprout, cantado por um Shane McGowan com os dentes arranjados – até à chegada de um coro que fecha a loja em modo boys band; “Never Gonna Let You Down Again” evoca o espírito dos The The, acrescentando-lhe um extasiado coro em falsete; “Fever”, da nova rodela, poderia bem ser uma malha dos Franz Ferdinand, se estes tivessem decidido crescer de forma diferente. Um concerto a pedir o regresso descarado – já agora, o LAV seria o lugar perfeito.
Quem se parece ter divertido à grande, tanto que tem já regresso marcado para a edição de Novembro – toca a 15 – do Festival para Gente Sentada, foi Jonathan Wilson, que aqui nos trouxe a sua trippy e muito particular instalação de Trafalgar Square – o tema que deu início à viagem -, num universo sonoro onde cabem delícias pop, slides de guitarra a par de vídeos que poderiam servir de promoção ao jogo SIMS, valsas eléctricas com solos de fazer corar Santanas e Claptons, passeios guiados pelo deserto, malhas de piano a fazer lembrar – e muito – os The War On Drugs, ecos de Pink Floyd com as rotações maradas, pedidos de namoro à boleia de um tutorial sobre posições yoga para ele e para ela, resultando num cocktail acompanhado por um daqueles chás artesanais que se tomam no conforto de casa antes da saída para uma festa de arromba. Peace, Jonathan.
Fotos: Hugo Lima
Sem Comentários