Era, para muitos, o concerto pelo qual se esperava há quase meia vida. De facto, olhando para a rotação de bandas como The Cure, The National ou Depeche Mode em Portugal, parece incrível que os New Order, que suportaram já quase tantas provações quanto as de Jesus Cristo a caminho da cruz, apenas tenham até à noite de 15 de Agosto visitado Portugal uma única vez – mais concretamente a 28 de Maio de 2005, numa edição do Super Bock Super Rock que teve lugar no Parque Tejo, em Lisboa.
Formados em 1980 na terra do chá das cinco por Bernard Sumner, Peter Hook e Stephen Morris, os New Order renasceram das cinzas de uma banda chamada Joy Division, que entre 1976 e 1980 praticaram como ninguém o isolamento, a depressão e a melancolia, numa mescla de punk, pós-punk e espírito a tocar o gótico. E que, como um furacão, atravessou a galáxia deixando para trás meteoritos como “Unknown Pleasures” e “Closer”, até que Ian Curtis, o então vocalista, cometeu suicídio na véspera de a banda partir para a sua primeira tour americana.
Sumner, Hook, Morris e Gillian Gilbert – que se juntou um nadinha mais tarde – fizeram-se à vida, inventaram um outro nome e, qual fénix renascida, fundiram o pós-punk com a música electrónica e mais dançável, criando um universo próprio que veio a transformá-los numa das mais icónicas bandas de toda a história da música. É certo que pelo meio houve separações, reatamentos, pausas ou novas entradas, mas a verdade é que a banda conseguiu sempre arranjar forma de sobreviver. Prova disso é “Music Complete” (2015), a sua décima e mais recente rodela de estúdio, onde aparecem nomes como Elly Jackson (La Roux), Iggy Pop e Brandon Flowers nas vozes mas, também, o senhor Tom Rowlands – uma das caras-metade dos Chemical Brothers – na produção dois dos temas mais alucinados e entusiastas do disco. Um passo em frente de uma banda que, mesmo com um imenso legado às costas, não hesita em entrar em experimentações.
Antes do concerto, um ecrã gigante no fundo do palco contava até cinco, podendo ver-se, também, uma bola de espelhos e um grande número de projectores, que prometia pirotecnia até ao tutano. Algo que começou a ser posto em prática desde o iniciático “Singularity”, onde passaram imagens da falência do mundo que incluíam tragédias, repressões policiais e criações humanas tão impensáveis quanto a do Muro de Berlim.
Um pouco mais à frente, Bernard pergunta se há por ali fãs dos Joy Division, fazendo-nos entrar a bordo da primeira cápsula temporal, servida em dose dupla com “She`s Lost Control” e “Transmission”, aumentando em alguns graus a já elevada temperatura da noite de Coura. Sumner atira-se à harmónica em “Your Silent Face”, mas a loucura chega com “Tutti Frutti”, esse tema que comete a leviandade de cruzar Ibiza com a música de bailarico, onde se assiste a uma invasão de palco difícil de sanar. “Que loucura“, ouve-se Bernard sussurrar em fundo, quase como se revivesse os tempos punk dos Joy Division, numa inesperada boleia de um tema pintado às cores e com bolinhas penduradas.
Aproveitando para respirar, Bernard lê um cartaz da fila da frente onde alguém diz ser da Coreia do Sul e fazer anos, acabando por ser presenteado com um par de baquetas. Bernard que se mostrou um verdadeiro senhor, tratando de fazer com que, no final, um dos seguranças oferecesse as setlists às pessoas certas, que tratava de ir apontando com precisão.
“One Of These Days” recebe uma nova roupagem e, em “Bizarre Love Triangle”, Sumner chega-se à frente a pedir que entoem com ele um refrão onde se grita “Every time I see you falling, I get down on my knees and pray, I’m waiting for that final moment, You say the words that I can’t say” com paixão.
A recta final reserva mais uma dose dupla, uma daquelas que põe à prova os corações e as ancas: “True Faith”, que haveremos sempre de recordar como aquela do vídeo com os tipos esquisitos ao estalo, e “Blue Monday”, esse hino intemporal que nos faz começar cada semana de trabalho com menos tristeza, e onde se assiste a um momento de pura ternura, com Bernard e Gillian a dividirem por momentos o teclado.
“Atmosphere” e “Love Will Tear Us Apart”, guardadas para o encore, são puro deleite e celebração – ok, “Love Will Tear Apart” na boca de Sumner soa algo estranho -, numa homenagem a Curtis que é, também, um hino à coragem, capacidade de sobrevivência e instinto criativo de Bernard Sumner, Stephen Morris e Gillian Gilbert, que não se deixaram tomar pelo luto e nos ofereceram dez discos com os quais fomos crescendo, enfrentando cada uma das singularidades e desafios colocados pelo mundo – que, entretanto, é já um outro. Num universo paralelo, o encore perfeito teria sido reservado para temas como “Regret”, “Fine Time” ou “Round & Round”, que trocariam as lágrimas vertidas por gotas de suor, espremidas de corpos que, nesta noite, poderiam ter dançado até cair.
Enorme foi, também, o concerto dos Car Seat Headrest, provavelmente a melhor banda rock da actualidade. Longe vão os tempos em que Will Toledo, numa de privacidade e em busca do lugar mais à prova de som, gravava as vocalizações no banco traseiro do carro, situação que acabou por vir a dar origem ao nome da banda, que formou depois de uns bons anos a tocar e a gravar a solo – nesta noite tocou tudo o que apanhou à mão. E, mesmo que ao longo dos anos a produção tenha perdido algum do espírito lo-fi – basta dizer que de momento a banda está com a Matador Records -, o modus operandi da banda continua a ser o do do it yourself, na busca de um indie rock que chegue ao coração de nerds, indies e todos aqueles que se queiram juntar à causa, através de canções onde há um exercício de introspecção, um elogio à imaginação e um dinamismo e ambição que as transformam em verdadeiros hinos de estádio.
Com aquele que foi, talvez, o melhor som de palco de todos os concertos que passaram por esta edição do Vodafone Paredes de Coura, Will Toledo foi sempre muito comunicativo, chegando mesmo a dizer que já conhecia algumas das caras das filas da frente.
Durante um set que foi demasiado curto de tão bom, ainda deu para soltar um pé de dança à boleia de “Bodys”, sentir a adrenalina do rock `n` rol com “1937 Skate Park”, ficar sóbrio com as luzes acendidas em “Sober To Death” – uma canção que Toledo diz estar habitualmente destinada aos pequenos clubes -, ganhar músculo e sentir o legado dos Talking Heads em “Weightlifters”, verter uma lágrima em Drunk Drivers/Killer Whales – uma das mais catárticas e emblemáticas canções da última década – e fechar a loja com a ponta final, constituída por “Destroyed By Hippie Powers” e “Beach Life-In-Death”, que termina como tudo deveria terminar: com o mundo envolto em chamas enquanto se canta sobre essa coisa tramada da existência. Memorável.
A haver um prémio para Miss Simpatia, Stella Donnelly teria deixado qualquer concorrência a milhas. Autora de uma das mais impressionantes rodelas do ano, onde cada um dos temas serve para esmiuçar um ódio, dissecar um problema ou, simplesmente fazer um manguito em forma de canção. Como, por exemplo, em “You Are Me”, canção que disse ser sobre o seu antigo patrão e o bar onde trabalhava. Stella avisa que, durante esta, irá mencionar o nome de uma cerveja australiana que é muito má, perguntando se por cá temos alguma dessas – alguém arrisca a Sagres mas sem muita saída. Stella diz ter feito essa pergunta na Bélgica e quase ter morrido, e acaba o tema fazer um manguito depois do último acorde – provavelmente dirigido ao ex-patrão.
Agradece o facto de os presentes terem decidido deixar para trás o concerto dos Khruangbin, uma das suas bandas preferidas, avançando para “Beware of the Dogs”, que termina com aquilo que poderia ser tomado por um uivo – pelo menos para quem estivesse longe e menos precavido. Em “Mechanical Bull”, depois de ter dito coisas como “I need to be alone, You’ve been at my throat“, promete que nem sempre está zangada como dá a entender, mas que nos próximos seis minutos o fará intensamente.
“Mosquito”, descrita por Stella como uma canção de amor, serve para contar mais uma história. Ao que parece, a música passou meio que por engano numa estação de rádio australiana, e pouco depois a mãe de Stella – “É enfermeira e é a maior“, disse – enviava-lhe uma mensagem de indignação, talvez por a certa altura da canção ser mencionado um vibrador maroto. Na volta, Stella disse-lhe qualquer coisa como o vibrador – não necessariamente o mesmo – anda a saltar na família de geração, e que para uma discussão mais séria o melhor seria mesmo falar com a avó.
A banda entra para a acompanhar em “Old man” e “Wayching Telly”, Stella agradece o mimo pela estreia em Portugal e é então que decidimos sair mais cedo para arranjar um lugar catita para os Alvvays, uma jogada que se veio a revelar tudo menos acertada. Detentores de duas rodelas bem desenhadas, onde a par de guitarra à solta se podem ler algumas das mais inspiradas letras no que ao indie pop diz respeito, a banda canadiana deu um concerto verdadeiramente desinspirado, fosse na forma automática e sem alma com que iam desfilando tema atrás de tema ou na incapacidade de criar qualquer momento íntimo com o público.
A abrir o palco principal estiveram os Khruangbin, tripla formada pela estilosa Laura Lee no baixo, o franjinhas Mark Speer na guitarra e Donald Ray “DJ” Johnson Jr. na bateria, com o seu estilo de banda sonora para o deserto mexicano. Um concerto que, de tão tranquilo e pouco movimentado, poderia ter sido trocado por um CD a passar em pano de fundo, não tivesse sido aquele brinde com copos de shot, o momento em que tocaram em garrafas a dois tons ou a misteriosa chegada de um telefone verde, onde se ouviu “Hello Paredes de Coura. If you like to say hello press One“. Vai-se a ver, até que nem foi um mau aperitivo para os pratos principais que se seguiram.
Fotos: Hugo Lima
Promotora: Ritmos
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