Moby Dick. Os Maias. A Odisseia. Dom Quixote. Ulisses. De entre os grande clássicos da literatura, é difícil encontrar algum que tenha sido lançado como trilogia, isto a não ser que acrescentemos à curta lista o épico “Em busca do tempo perdido” que, não contente com a dose tripla, esticou a corda até aos sete volumes. Ou, se quiserem, o quarteto russo “Guerra e Paz”, épico assinado por Tolstoi.
Talvez tudo tenha começado com “O Senhor dos Anéis”, ainda que de forma profundamente subvertida. Afinal, a ideia original de Tolkien seria editá-lo num único volume, composto por um prólogo, seis livros e cinco apêndices. A verdade é que, desde então – ou pelo menos desde a sua adaptação cinematográfica -, as trilogias estão para a edição literária como a manteiga está para o pão, como se fosse impossível criar uma história de corpo inteiro num volume único. Isso ou, na óptica do marketing editorial, fazer render o peixe tornou-se a palavra de ordem. O que, dependendo da qualidade da prosa, se torna ou não um motivo de celebração por parte do leitor.
Autora de livros de fantasia, onde se inclui a série Dreammark e “Lips Touch”, este último romance finalista do National Book Award, Laini Taylor escreveu também “A Quimera de Praga” (Porto Editora, 2015), o livro que dá início à trilogia Entre Mundos e que está já na lista de adaptações ao grande ecrã pela mão da Universal Pictures.
Karou, personagem central da narrativa, estuda no Liceu de Arte da Boémia. Tem o cabelo azul vivo e uma constelação de tatuagens nos braços e nas pernas. Os seus bolsos andam sempre cheios de coisas curiosas, como moedas de bronze antigas, dentes ou pequenos tigres de jade. E, se quiséssemos usar de poesia para a descrever, seria mais ou menos isto: «Movia-se como um poema e sorria como uma esfinge». Razões mais do que válidas para ser perseguida por Kazimir, o ex-namorado, que organiza circuitos de vampiros para turistas que visitam Praga em busca de alguma animação e sangue, mesmo que falso.
A sua melhor amiga dá pelo nome de Zuzana, com quem passa tardes de ócio num pequeno restaurante chamado A Cozinha do Veneno, um paraíso escondido debaixo de uma ponte antes de ser invadido por turistas que procuram o sobressalto – e as fotos junto de esqueletos. Suzana é uma das maiores apreciadoras dos desenhos de Karou, que enche caderno atrás de caderno com estranhos seres e criaturas, criando uma novela gráfica de assombro que tem uma imensa legião de seguidores. O que Zuzana – ou qualquer pessoa – não sabe é que Karou tem mais do que uma vida, e que os estranhos seres que habitam nas páginas dos seus cadernos vivem fora delas.
Assim que transpõe a porta da loja de Brimstone, normalmente frequentada por «um bando fedorento, sem alma, com as unhas sujas de sangue e tripas», a sua existência transforma-se. Brimstone, conhecido no submundo como o desejeiro – aquele que concede desejos -, é uma quimera, qualquer coisa como um demónio, tendo treinado Karou para ir em missões secretas por todo o globo onde no regresso lhe traz dentes com os quais constrói colares.
Há, porém, algo de muito estranho a acontecer. Nas portas que usa para atravessar os portais do tempo, Karou começa ver gravadas a fogo marcas de mãos negras, percebendo depois que foram feitas por estranhos seres alados – os serafins – que saíram de uma fenda do céu para reavivar uma guerra que dura há séculos.
Dividida entre a lealdade às quimeras, o conforto humano e a admiração pelos seres com asas, Karou pressente que a sua vida acaba de mudar para sempre, chegando o momento de transpôr a porta proibida para ver respondidas algumas das questões que tem guardadas dentro de si desde o berço: de onde veio? Quem são os seus pais? Porque razão tem tão poucas memórias? Para que servem tantos dentes?
Imaginativo e cativante, ” A Quimera de Praga” tem a dose de romantismo habitual neste tipo de livros, mas está mais perto de um Romeu e Julieta do que propriamente de uma Cinderela – pelo menos nesta fase da trilogia. Lainy Taylor usa o lado fantástico da literatura para falar de assuntos como a procura de uma identidade, a busca da verdade ou a inevitabilidade da traição, num livro que esconde algumas surpresas e reserva o melhor para o fim. A boa notícia é que “Dias de Sangue e Glória”, o segundo livro da trilogia, chega às livrarias a 17 deste mês.
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