Costuma dizer-se que no aproveitar é que está o ganho. O que significa que, aplicando esta máxima popular com laivos económicos a Stranger Things, a mais bem-sucedida série da Netflix, estaremos a falar de um aproveitamento em ponto de rebuçado – ou pronto a entrar em Bolsa. Depois do merchandising composto por Pops, T-Shirts, jogos de tabuleiro e tudo aquilo em que conseguirem pensar, o domínio do mundo invertido estende-se agora à literatura, com a publicação de livros rotulados de Ficção Oficial que decorrem muito antes da primeira temporada – e que dão a conhecer melhor algumas das personagens da série. Até ao momento, chegaram às livrarias portuguesas dois títulos, ambos com o selo da Gailivro: “Mentes Inquietas”, de Gwenda Bond, e “Nova Iorque Sob Trevas”, de Adam Christopher.
Em “Mentes Inquietas” recuamos até 1969, ano em que ondas de choque atravessavam uma América a braços com a distante guerra no Vietname e protestos internos de violência crescente. Uma época de experimentação, onde cada dia parecia surgir uma nova droga capaz de mudar o mundo interior. É neste cenário que mergulhamos no laboratório do Dr. Martin Brenner, que estuda o uso de drogas psicadélicas em cobaias com um propósito bem definido: “Estamos aqui para alargar as fronteiras da capacidade humana. Não quero ratinhos comuns em forma de gente”.
Um desses ratinhos incomuns dá pelo nome de Terry Ives, a mãe de uma ainda não nascida Eleven – ou Onze – que, por motivações económicas – 15 dólares por sessão –, aceitará ser uma das cobaias do estudo de Brenner, onde terá a companhia de gente como Alice, que gosta de máquinas, trabalha com carros e anda sempre com as unhas sujas, Ken, que diz ser um vidente diplomado, ou Gloria, grande fã dos X-Men – e em particular de Jean Grey.
As referências culturais são muitas, desde o mítico concerto de Janis Joplin no Woodstock, o início da carreira a solo de Paul McCartney, a guerra do Vietname ou “O Senhor dos Anéis” de Tolkien, num livro que abre a porta para aquilo que iremos descobrir na primeira temporada: o Submundo – “As árvores estão quebradas, há teias e uma substância pegajosa a nascerem por cima delas. Pequenos esporos flutuam no ar.” -, o primeiro vislumbre do Monstro – “O tipo de personagem que aparecia nas bandas desenhadas que os seus primos liam. O tipo de criatura que nasceria caso desmembrasse um ser vivo e o voltasse a montar sem manual de instruções. Tinha os braços demasiado longos. Uma cabeça que parecia uma flor preta.” – ou o imenso vazio a que Terry chama de sonho circular – no qual veremos Eleven muitas vezes.
Já “Nova Iorque Sob Trevas” viaja entre dois tempos: 1984, o ano corrente do calendário Stranger Things, onde Jim Hopper desfruta do seu primeiro Natal com Onze – ou Eleven – em Hawkins; e 1977, ano em que Hopper regressa do Vietname para uma nova vida: uma filha pequena, uma mulher carinhosa e um emprego como detective na Polícia de Nova Iorque.
Quando Onze descobre uma caixa de arquivo onde se lêem as palavras Nova Iorque, Hopper será obrigado a contar-lhe sobre o último grande caso que teve na Grande Maçã, na companhia da parceira Delgado – “uma brasa sem tento na língua” -, e que envolvia um assassino em série que despachava as vítimas com o mesmo modus operandi: “esfaqueado cinco vezes, depois cortado entre as feridas iniciais para formar uma estrela de cinco pontas. Sem sinais de entrada forçada ou de luta”. E sempre com uma carta com um símbolo desenhado à mão com tinta preta: uma estrela oca de cinco pontas.
Apesar de serem vendidos como Ficção Oficial, estes livros servirão essencialmente como uma espécie de dicionário ou enciclopédia, com informações úteis sobre o passado das personagens que vão dando cartas na série televisiva. Isto porque nenhum dos livros consegue recriar o espectáculo visual, o humor adolescente (e, também, pré-adolescente e mesmo infantil) e o terror muito próprio da série da Netflix, que numa mistura de Goonies, E.T. e Poltergeist recria com distinção uma época marcada por música deliciosamente broa, jogos incríveis e uma indumentária que, de tão duvidosa, parece poder tornar-se moda indie três décadas depois.
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