Quem diria que, ao segundo dia, a Herdade do Cabeço da Flauta seria palco da coroação de Heloise Letissier? Uma dama que, no que diz respeito à história de cavaleiros, princesas, lendas e batalhas, ficará doravante conhecida por Christine, da casa Christine & The Queens.
Era ainda dia quando, meio à nora e na sua maior parte desconhecedores do universo da cantora francesa, os poucos espectadores que se encontravam junto ao Palco Super Bock viram chegar Christine e a sua armada de bailarinos, que fizeram deste concerto algo entre uma coreografia espacial de Olga Roriz e a recriação ao vivo da série Fame – cuja banda sonora poderia bem ter tido um par de temas de Christine & The Queens, para quem os anos 80 permanecem como o terreno mais fértil ao acto criativo.
Christine percebeu bem cedo que, para agarrar aquela gente, teria de o fazer depressa, pelos colarinhos e com muito suor a pingar na testa. Feita a promessa de a dança ir durar até ao sunset, fala-nos da criação de um espaço sagrado onde não há lugar para julgamentos, apenas para o amor. Depois de aberta a pista, Christine recorre ao seu hidratante – uma garrafa daquilo que pareceu ser um espumante ou um muito robusto tinto -, apontando o triângulo emoções-suor-lágrimas como as suas Bermudas.
Com uma identidade que adora permanecer no terreno da indefinição, apresenta-nos a “iT”, do primeiro longa-duração, dizendo que durante os quatro minutos seguintes – a sua realidade imediata – iria desfrutar do facto de ser um homem. Um momento enternecedor que contou com as testas solidárias de alguns dos bailarinos, também eles recusando selos, etiquetas ou carimbos de género.
Sempre com muita conversa pelo meio, Christine falou das dificuldades que teve em se encaixar, sentindo sempre que não pertencia a lugar algum. Até que deixou de olhar para isso com resignação, passando a encarar com prazer o facto de ser ligeiramente “Tilted”, adoptando assim um muito próprio mantra musical: um problema, uma canção; uma separação, uma canção; tristeza, uma canção.
Há ainda tempo para uma emotiva versão de “Heroes”, de David Bowie, bem como para descer até junto do público, onde interpretou uma canção de fazer chorar as pedras da calçada em cima de uma plataforma. “Take care of yourself”, atira na despedida, naquele que foi o mais inclusivo e vibrante concerto do dia – e um dos melhores momentos de todo o festival.
Não há registo desta Phoenix alguma vez ter frequentado a Academia do Professor X, mas há por aqui poderes suficientes para arrumar qualquer vilão das pistas de dança. Em boa verdade, estes Phoenix sempre mostraram ser adeptos de mutações, desde o punk e o krautrock dos primeiros tempos à posterior conversão à pop com balanço.
Contando com uma apreciável fanzone, os Phoenix aproveitaram o último concerto da tour para descomprimir, num concerto que contou com um esmerado lado visual, uma massiva participação popular feita de coros certeiros e refrões afinados, uma dedicatória especial ao amigo Philippe Zdar em “Rome” – cada canção, cada disco, tudo o que fazemos é para ele – e até um crowd/stand up surf do vocalista Thomas Mars, que incitou à sublevação popular enquanto ia partilhando a bebida de quem tivesse o braço comprido e mostrasse ter um copo meio cheio na mão.
“Obrigado por serem muitos e cantarem“, diz a certa altura, encantado com uma recepção de todo o tamanho. Sempre naquele registo pára/arranca muito próprio, os Phoenix revisitaram muitos dos seus clássicos, temas onde tanto descobrimos a veia boys band dos Pink Floyd – “If I Ever Feel Better – como aprendemos, com imagens de galerias, do Coliseu de Roma ou de uma miúda demasiado parecida com a Cicciolina, o Bê-á-bá da língua italiana – com eles temos um disco quase inteiro a servir de gramática.
“Sempre que vimos tocar a Lisboa sentimos um blast”, reforça Mars, rosto maior de um grupo que sabe dar uma festa, que termina com o DJ invisível a passar uma malha italiana que assentaria que nem ginjas na banda sonora de Master of None. Foi tão bom que gritámos “Ti Amo” a ninguém em particular.
Nota mais para a parceria sentimental entre os Calexico e Iron & Wine – mais concretamente Sam Beam -, que protagonizaram um fim-de-tarde enternecedor no Palco EDP. Um concerto onde o melhor ficou ficando para o fim, desde o belíssimo “What Heaven’s Left” ao festivo “Flores y Tamales”, este último um tema Calexiano dos sete costados. A abaladiça dá-se com Joey Burns e Sam Beam – escolhendo, de copo de vinho branco na mão, uma de entre o seu arsenal de quatro guitarras – a interpretarem “Sunken Waltz”, dos Calexico, e ‘Naked as We Came’, de Iron and Wine, como que tentando provar que o silêncio – ou um som incrivelmente baixo – pode ser o ingrediente principal para a confecção do melhor sunset de um festival de rock. Um privilégio ouvir esta malta.
Antes disso e com pronúncia do norte, o Conjunto Corona snifou coca-cola, perdeu-se na variante a caminho de Gaia e fez peões na rotunda de Santa Rita de Ermesinde, num comício por Gondomar onde só faltou mesmo a oferta de electrodomésticos. Sois gentis, rapazes.
Fotos duvidosas e vídeos manhosos: Pedro Miguel Silva
Promotora: Música no Coração
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