Herdeiro maior da tradição folk-rock norte-americana – de braço dado com malta como Kurt Vile ou Angel Olsen -, Kevin Morby virou-se recentemente para as alturas suspirando um “Oh My God”, o seu quinto e muito despido longa-duração. Uma rodela que respira religião, enquanto vai trauteando melodias Gospel como se a felicidade estivesse mesmo ali ao virar da esquina.
Repetente nos palcos portugueses, Kevin Morby esteve no Teatro Municipal São Luiz no âmbito das comemorações do 25º aniversário do ZDB, em mais um concerto fora de portas. O formato foi pouco habitual, com Morby a navegar entre o piano de cauda e (sobretudo) a guitarra eléctrica. Tendo por companhia um solitário e choroso trompete, soprado por Hermon Mehari, Morby derivou entre a declamação, a reza e o canto, conduzindo-nos numa visita guiada aos bastidores da criação, tratando de desmontar osso a osso o esqueleto primordial que sustenta a sua discografia.
A decoração de palco apresentava um arranjo floral a fazer lembrar a capa de “Power, Corruption & Lies”, essa incrível rodela dos New Order, ainda que aqui se tivesse acrescentado uma generosa dose de algodão doce. Um cenário sacralizado, que se confirmaria com a entrada em cena de Father Kevin Morby, trajando um fato branco e muito decorado, com uma estampa de todo o tamanho nas costas onde se lia “Oh My God” – precisamente o tema com que arrancou esta celebração religiosa, com Morby ao piano a afinar a voz até à entrada de mansinho do trompete, que poderia bem ser o choro de um anjo caído em desgraça.
“Hail Mary”, já com Kevin Morby a dedilhar no seu instrumento predilecto, terá sido a mais bela das Avé Marias jamais rezada numa igreja ou templo – pelo menos de entre as rezadas por um padre com asas desenhadas nos joelhos; em “Savannah” Morby abraça o estilo spoken word, num momento puro de poesia declamada com sotaque americano; em “Piss River” jogamos xadrez dentro de um peito alheio, deixando-nos levar por aquele embalo rocker e muito gingão de Morby, que é já de assinatura.
Quando chegamos a “Congratulations”, Morby assume definitivamente o papel de pregador e, para os mais indecisos, há um trompete que trata de dar aquele impulso final à conversão. “Seven Devils”, uma das grandes malhas deste novo disco, está entre uma daquelas histórias que se conta à pequenada antes da ida para a cama e aquela versão abreviada que reúne, no mesmo volume, o melhor do Inferno de Dante e do Paraíso Perdido de Milton. “Oh Behold” é, decididamente, uma canção de ascensão, aquilo que provavelmente irá soar nas colunas quando tentarmos cruzar os portões guardados implacavelmente por S. Pedro.
Já sem o trompetista Morby atira-se a “No Halo”, com um rendilhado muito groovy que poderia ter estado na banda sonora de “Os Marginais” ou de outro filme sobre jovens delinquentes e putos rufias, a que se segue “Crybaby”, que fecha este capítulo sobre traumas e maleitas da juventude.
“É uma experiência estranha estar aqui sozinho“, diz, antes de se acenderem as luzes revelando uma sala lotada e já rendida, que recebe aquele mimo habitual mas que fica sempre bem: somos o melhor país do mundo ou, pelo menos, andamos lá bem perto. E lá fomos com a moral em alta apanhar “Black Flowers”.”Aboard My Train” é aquele momento Pitch Perfect, um acapela muito marado que do nada se transforma numa gritaria catártica.
Waxahatchee – que no BI assina como Katie Crutchfield -, a convidada muito especial desta noite, sobe ao palco para uma versão imaculada de “The Dark Don’t Hide It”, a canção de Jason Molina que aqui encontra uma voz que tem a country no sangue. Chega então o momento da comunhão onde, ao som de “Downtown’s Lights”, Morby transmuta o corpo de cristo em acordes abençoados, tratando de os distribuir aos fiéis da congregação.
Já em formato trio Morby prepara terreno para uma canção que diz ter nascido do privilégio de ser músico, de criar uma fogueira que arde durante uns minutos e à volta da qual se partilha a arte da criação – e a beleza da vida – entre “Beautiful Strangers”.
Segue-se “Destroyer”, carregado de um certo toque jazz, antes do regresso de Morby à guitarra com “I Have Been to the Mountain”, onde se assiste a um casamento de Santo António entre a guitarra e o trompete. “Oh my god”, grita alguém da plateia, ao que Morby responde com um “Oh my goodness” e a mesma pulsão rock n roll de “Cut Me Down”.
Para o encore previamente anunciado por Morby e na companhia de Waxahatchee tenta-se uma música não muito ensaiada. “Se correr mal poderão dizer que lixámos isto tudo“. O resultado é belíssimo, numa interpretação para mais tarde recordar de “It Ain`t Me Babe”, dos The Turtles.
“In The Parade” parecia estar talhada para a despedida, contando com um coro entusiasmado. Seria aquele momento em que, na igreja, o paralítico se levantaria e o cego iria recuperar a visão. “Cheguem a casa em segurança. Sejam vocês próprios. Tenham simplesmente um bom momento. Sempre.” É então que o “Harlem River” galga as protecções, soltando o lobo que passeia agora sem trela, tudo enquanto a conta da electricidade dispara com Morby a dar corda ao gravador de pistas. Vão em paz e que o Father Morby vos acompanhe. Talvez vá comungar no próximo domingo, terão pensado uns quantos. Amén a isso.
Fotografias: Vera Marmelo
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