Se há amores que são eternos, o de Pedro e Inês é um deles. Se há amores que ficam no nosso coração, “Inês e eu” (The Poets and Dragons Society, 2019) é um deles. Falamos de um livro de poesia, surpreendente e perturbador de corações sensíveis. Nele, D. H. Machado oscila entre poesia e prosa poética para nos oferecer uma nova leitura do amor de Pedro e Inês, um amor narrado pela voz de Pedro ao longo de três capítulos, três estados de alma de Pedro face ao seu amor.
D.H. Machado pauta-se por regras próprias, distantes da métrica regular ou de qualquer esquema rimático. Escreve onde a pontuação inexistente nos dá a liberdade de degustar a delicadeza de cada palavra, de sentir a simplicidade de cada som, deixando-nos perder em sumptuosas vagas de paixão.
O ritmo é marcado pela repetição lexical. As rimas despertam, no leitor, sentimentos de afecto, de sensualidade e até de algum erotismo, marcando a contemporaneidade da poesia. Nós, leitores, somos convidados a reflectir sobre as categorias da estética corporal e do próprio conceito de amor, onde a vida e a morte comungam.
Ao longo da leitura de “Inês e eu” há três palavras que marcam presença: corpo, palavra e jardim. Comecemos pelo corpo. As sensações são valorizadas, verdadeiramente sentidas. Sentir o corpo para procurar a felicidade de um amor intenso. Percorrer a geografia iluminada de um “corpo maduro”, desbravando segredos escondidos nas “mãos”, nos “ braços”, no “ ventre”, no “rosto” ou no “coração”, o deleite do momento onde “não sinto nada e ao mesmo tempo sinto tudo”.
A repetição intencional da palavra “corpo” possibilita-nos recordar alguns filósofos que pensaram o corpo, tais como Platão, Descartes, Espinosa, Deuleze ou Foucault, entre outros. Tomemos, como ponto de partida, o livro “Ética” de Espinosa: “(…) que ninguém determina, até agora, o que pode o corpo (…)” – Afinal, o que pode o corpo? Ao longo da leitura de “Inês e eu” encontramos várias respostas a esta questão. O corpo pode ser: “origem onde as palavras e os movimentos recriam os traços de perfeição”; “aroma de terra húmida“; “deserto perfumado”; ou, ainda, “templo onde o mundo dá forma e substância aos sonhos”. Dito de outra forma, o corpo pode ser desejo, amor, dor, opressão, sangramento, repouso.
Ainda a propósito do corpo, não podemos ignorar o Prefácio deste livro de poesia, algo completamente diferente. Não se trata de um prefácio tradicional, que nos apresenta uma súmula do conteúdo ou nos explica a sua intencionalidade ou a estrutura da obra. Nada disso. Aguça a curiosidade, apela à intertextualidade. Trata-se de um maravilhoso excerto do livro “O Paciente Inglês”. Curiosamente, existem algumas semelhanças entre as duas obras: em ambas encontramos uma história de amor, a ampliação das vozes dos personagens e das memórias individuais, mas é na cartografia do corpo que as semelhanças assumem um significado relevante.
Palavras. Talvez seja o segundo vocábulo com mais presença neste livro de poesia. Que palavras são estas? São palavras que rompem o silêncio para serem sussurradas no leito do amor. Com as palavras sentimos, amamos, desejamos, prometemos, quebramos e reparamos corações.
O sabor das palavras não vem no dicionário, mas as palavras têm sabor. Algumas são como a seda – suaves. Deslizam com suavidade pelo corpo. Outras são melancólicas, guardando na memória os momentos únicos, vividos pelos amantes. Há palavras de sabor amargo, ácido. Há palavras para rasgar, outras para apagar. Mas, no coração, só há lugar para as palavras que nos abrigam. D.H. Machado, o autor de “Inês e eu”, partilha connosco palavras de abrigo. Palavras de beleza, de prazer, de desejo, as palavras do mais belo amor. Palavras do amor proibido. Palavras do corpo.
Jardim. A última palavra escolhida para falar de “Inês e eu”. Ao longo da leitura somos levados a deambular entre “árvores ancestrais”, desfrutar os aromas de jasmins ou, simplesmente, “misturar o perfume das estações“. Os jardins e os amores têm similitudes, uma vez que ambos têm de ser cultivados, polinizados, capinados, para remover as “ervas daninhas” de modo a colher o melhor dos frutos ou a flor mais bela.
Ao longo dos tempos, a tipologia de jardins tem sofrido alterações. Não custa imaginar que os jardins de Pedro e Inês estariam próximos do jardim monástico, enquanto local de recolhimento, e do jardim romântico, enquanto lugar privilegiado de passeio, de ser visto e admirado, de viver cumplicidades amorosas. Não podemos esquecer os jardins da Quinta das Lágrima, localizada na margem esquerda do Mondego. A quinta dos amores proibidos de Pedro e Inês.
Por último, uma pequena mas significativa referência à ilustração e apontamentos de um amor eterno que surge na última parte do livro, da autoria de Rodrigo Mota – ou ligeiramente canhoto, como gosta de ser conhecido. São captações de momentos, quiçá, de um observador anónimo, que nos esboça as cenas de mais belo amor. Uma outra forma de narrativa. Uma outra forma de ler. Uma outra forma de diálogo. Como se tivéssemos duas perspectivas diferentes, mas simultaneamente complementares do mesmo amor. Uma outra forma de forma de epílogo.
D.H. Machado nasceu em Lisboa no ano de 1974. Começou a escrever poesia aos 12 anos e fê-lo ao longo de toda a sua adolescência. Tal como Rimbaud, parou subitamente de escrever aos 20 anos. Nos anos seguintes dedicou-se à vida académica e profissional. Em 2003 foi-lhe atribuído o Prémio Revelação Cesário Verde pela obra “Dionísias”.
Rodrigo Mota nasceu em Lisboa em Agosto de 1976. Os desenhos sempre funcionaram como um refúgio. Desenha para acalmar e, por isso, desenha todos os dias. É canhoto quando desenha e/ou come sopa. É conhecido por Ligeiramente Canhoto.
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