Se pensarmos em concertos ao vivo, e tirando da lista aqueles com um orçamento capaz de recriar em palco a parafernália de um Missão Impossível, o ambiente cénico encontrado é normalmente de alguma contenção, cabendo a quem pisa o palco a tarefa de construir, em palco, os elos emocionais que o disco não consegue oferecer.
Olhando para Portugal, há bandas e artistas que têm apostado numa envolvência cénica e estética que acrescenta algo mais à performance musical. Se os Dead Combo têm noites em que transformam o palco num pequeno teatro, recorrendo a uma decoração de mestre capaz de encher capas de revista ou servir de fundo a uma tira de comics, Noiserv apela mais a uma dimensão emocional, em concertos ilustrados num cenário que poderia bem ser o quarto de uma criança com um gosto particular por instrumentos estranhos.
Outro caso estético muito particular é vivido pelos Um Corpo Estranho, uma banda de Setúbal que, para além dos concertos em formato duo – João Mota e Pedro Franco são o núcleo duro – ou em banda no modelo tradicional, tem apresentado a espaços performances singulares, que cruzam áreas como a dança ou o teatro.
Com um novo longa-duração onde parecem ter decidido tirar férias do gosto pela sobreposição de camadas sonoras e partir rumo à contemplação, a banda voltou a colaborar com Ricardo Mondim, apresentando ao vivo – no Cine-Teatro S. João, em Palmela – uma encenação deste “Homem Delírio”, que combina música, teatro, artes circenses e dança, dando corpo a esta banda sonora feita de dedilhados e a uma voz que vai contando histórias sobre o fim do homem.
O ambiente está entre o futurismo do Delicatessen de Jeunet e Caro e o espírito pós-apocalíptico de um Mad Max, apresentando-nos a Abelâmio, um tipo que arrasta uma carroça/casa/museu e vai percorrendo as ruas de um mundo sem data e habitado pela doença e o medo, procurando entre os escombros retalhos de um mundo que já não existe – e que recorre à imaginação para fazer regressar a felicidade de tempos inalcançáveis. Pedro Franco e João Mota são, também eles, actores, figurantes principais de um espectáculo que alcança o estatuto de concerto/performance e que acaba por conseguir levar o disco, tocado de uma ponta a outra e sem direito a encore, a um patamar superior. Que não tenha sido apenas um concerto único, e que uma digressão possa levar este Homem Delírio a percorrer os teatros e as ruas deste país.
Fotos: Carlos Jorge (Xetubre)
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