Nunca a expressão «teatro das operações» fez tanto sentido quanto em “A Rapariga do Tambor” (Dom Quixote, 2018 – reedição), já um clássico moderno, escrito pelo Britânico John le Carré em plena Guerra Fria, em 1983, e relançado três décadas e meia depois, quando o Muro de Berlim, afinal, parece não ter ruído, mas se multiplicado em vários outros muros.
A premissa da história por si só é instigante, ao mostrar o laborioso e minucioso treinamento de uma jovem actriz inglesa pelo serviço secreto de Israel, a fim de que se infiltre numa célula terrorista palestiniana especializada em convencer (e converter) raparigas ocidentais a transportarem artefactos explosivos dentro de malas.
A trama fica ainda mais interessante quando a jovem actriz, a rebelde e activista Charlie, encarna tão bem o papel que não se sabe ao certo se, no fim, colaborará com os israelenses ou decidirá por tomar parte da causa palestiniana, e levar a cabo o plano de entregar uma mala abarrotada de explosivo russo à próxima e incauta vítima.
O trunfo do livro está na forma como a história é contada, numa espécie de antinarrativa de espionagem, lenta e não-belicosa. Nunca é de mais lembrar que le Carré (nome de código para David Cornwell ou vice-versa) foi espia, com passagens pelo MI5 e MI6, com direito a trabalhar infiltrado no serviço diplomático britânico numa Berlim ainda cindida.
Jonh le Carré, portanto, sabia que a espionagem era um serviço menos glamoroso do que se pensa, comezinho até, com agentes a tomarem café em pequenos copos descartáveis entre carimbos e cortes no orçamento das operações. Bem diferente da realidade de um James Bond, com licença para matar e também para gastar.
Para se ter uma ideia, levaram-se mais de 500 páginas para um tiro ser disparado e, mesmo assim, em alvos artificiais, durante uma sessão de treinamentos da actriz. Tempo suficiente para 007 – ou até mesmo seu mais competente concorrente, Jason Bourne – dizimarem uma dezena de vilões e milhões de euros em património público e privado.
Esse carácter vintage da história, longe de ser um problema, é o grande charme do livro, ele próprio espesso como um tijolo do Muro de Berlim, oriundo de uma outra época, uma espécie de pretérito perfeito, quando as pessoas tinham disposição e tempo (e o privilégio) para mergulharem na imersão completa da ficção.
Falando em imergir na ficção, a dúvida que a protagonista carrega, sobre qual dos dois lados está certo – o israelense ou palestiniano – é a história dentro da história, pois o livro não se dá ao trabalho de elucidar a questão, até porque talvez não seja o caso de se tentar dividir o mundo de forma maniqueísta entre heróis bonzinhos e vilões maus.
A reedição do livro veio acompanhada de uma série com a chancela da BBC (em cartaz no AMC), o que é garantia de um produto tecnicamente bem feito, com uma restituição impecável da época, a aposta num filtro de luz opaco como os cinzentos anos da Guerra Fria e a didáctica intenção de se mostrar um mundo antes da internet e do smartphone.
A série, porém, caiu na armadilha actual da velocidade e tentou resumir a volumosa obra em meia-dúzia de capítulos, o que fez o tambor da rapariga tocar em ritmo acelerado, sem dar margem à lenta metamorfose da actriz em activista. De tão apressada, corre o risco de ser rapidamente esquecida, ao contrário do livro, senhor do tempo e sabedor de como se resistir aos seus constantes ataques.
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