Para quem já se aventurou no mundo de Haruki Murakami, escritor que tem dito partir quase sempre da folha em branco para escrever os seus livros, já não será surpresa quando, numa narrativa aparentemente terráquea, surge de repente um fantasma de um antepassado ou um animal que fala. É esta capacidade de efabulação, de transformar o mundo num lugar onde o fantástico e a realidade coexistem através de portais acessíveis por todos e que abafam as contradições da existência, que faz dele um eterno candidato ao Nobel da Literatura, bem como um dos grandes romancistas vivos.
Assumindo-se como uma homenagem a F. Scott Fitzgerald e a “O Grande Gatsby” – ainda que nele se ouçam, também, ecos de “O Retrato de Dorian Gray” de Oscar Wilde e da ópera Don Giovanni de Mozart -, “A Morte do Comendador Vol. I” (Casa das Letras, 2018) é mais um acrescento à biblioteca Murakamiana, abarcando os temas da solidão, do amor, da arte e do mal, aqui com o twist de introduzir, também, a questão da paternidade, até agora um assunto intocado pelo escritor japonês.
Neste romance, um retratista de 36 anos é abandonado pela mulher, deixando Tóquio para percorrer o Japão sem destino, acabando por ir viver para uma casa de montanha que havia sido o refúgio de um famoso artista já morto, de cujo filho o protagonista é amigo.
Tal como em “O Grande Gatsby”, o verdadeiro protagonista acaba por ser revelado mais tarde e de mansinho. Menshiki é o personagem que, tal como Gatsby, irá conferir ao livro uma aura de mistério, com a sua cabeleira branca, um olhar difícil de ler e o facto de não haver sobre si grande alimento na infinita autoestrada da informação. Será ele que irá propor ao retratista que não o quer ser uma encomenda que, de tão bem paga, será um absurdo recusar, ainda que por trás dela se vá desenhando uma estratégia bem mais profunda.
Em paralelo, o narrador descobre na casa um quadro intitulado A Morte do Comendador, uma obra-prima escondida do olhar de todos, que trará ao livro o espírito da fábula a que nenhum livro do japonês quer escapar.
A par disto, todas as noites, antes das duas da manhã, o narrador ouve um sino antigo que parece chegar das profundezas do tempo. Mergulhando na floresta, descobre um santuário feito de pedras quadradas, despertando nele “a imagem de alguém enfiado naquele buraco lúgubre e apertado”, de alguém arrependido de um voto de silêncio que toca um sino cujo som se perde entre a floresta, incapaz de chegar a um outro ouvido humano. Mais um sonho acordado do ilusionista Murakami, que irá manter o leitor bem desperto até à última página. A segunda e última parte do romance está já disponível nas livrarias.
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